11/04/2012

ANTÓNIO MARINHO E PINTO

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O enriquecimento ilícito

O Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais várias normas do Decreto da Assembleia da República que criava um novo tipo legal de crime denominado "enriquecimento ilícito". De acordo com o tribunal a nova incriminação viola as normas dos artigos 18.º n.º 2, 29.º n.º 1 e 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

Sublinhe-se, desde já, que a primeira daquelas normas constitucionais diz, em síntese, que a lei só pode restringir direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Ora, o tribunal considerou que se a finalidade da nova incriminação era punir crimes anteriormente praticados e não esclarecidos processualmente, geradores do enriquecimento ilícito, então não havia um bem jurídico claramente definido no novo tipo legal de crime, o que acarretava necessariamente a inconstitucionalidade da norma. Punia-se para proteger um qualquer bem jurídico indefinido, não se podendo fazer um juízo de adequação e proporcionalidade entre o bem jurídico sacrificado com a punição e aquele em nome do qual se punia.

Por outro lado, a nova incriminação não permitia a identificação da ação ou omissão que era proibida, com o que se violava a exigência de determinação típica do artigo 29.º, n.º 1 da Constituição. Com efeito, diz esta norma que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou omissão. No caso concreto, a nova lei não fornecia, afinal, a fonte da ilicitude do enriquecimento, ou seja, a ação (roubo, furto, corrupção, tráficos, etc.) ou omissão penalmente ilícitas.

Finalmente, o artigo 32.º, n.º 2 da CRP ao dizer que todo o arguido se presume inocente, exige que uma decisão condenatória em matéria penal assente na demonstração positiva da culpa do arguido, para o que é necessário que o legislador não estabeleça presunções de culpa nas normas penais e não faça decorrer a responsabilidade penal de factos apenas presumidos. No caso concreto, o tribunal considerou que o novo tipo legal de crime permitia que uma vez verificada a incongruência entre o património e o rendimento, tal seria qualificado como enriquecimento ilícito sem se demonstrar a ausência de toda e qualquer causa lícita para o enriquecimento, até porque o elenco de causas lícitas é aberto e potencialmente inesgotável. Dessa forma estar-se-ia a presumir a origem ilícita daquela incongruência e a imputar ao suspeito um crime de enriquecimento ilícito, o que redundaria em manifesta violação do princípio da presunção de inocência.

A decisão do Tribunal Constitucional afasta, assim, Portugal do elenco de países que criminalizaram o enriquecimento ilícito tais como a China, Hong Kong, Macau, Equador, Argentina, Salvador e Chile e aproxima-o da esmagadora maioria dos estados, entre os quais o Canadá, os Estados Unidos, a Finlândia e o Reino Unido os quais se recusaram a criar esse novo tipo de crime, justamente por o mesmo violar o princípio da presunção de inocência. O acórdão do TC cita mesmo a declaração dos EUA sobre a não criminalização do enriquecimento ilícito, segundo a qual isso implicaria "a transferência para o arguido do ónus da prova relativamente ao estabelecimento da natureza legítima da fonte de rendimento em causa. Uma vez que a Constituição dos Estados Unidos prevê a presunção de inocência do arguido, é impossível criminalizar o enriquecimento ilícito".

Aliás, a grande maioria dos estados não admite a criminalização do enriquecimento injustificado, justamente porque têm dificuldades em sustentar essa criminalização face ao princípio da presunção de inocência ou então porque consideram que tal criminalização não é necessária já que têm outros instrumentos mais eficazes de combater a criminalidade económica que pode originar esse enriquecimento (corrupção, tráfico de influências, participação económica, etc.).

É também isso que Portugal, enquanto país moderno e civilizado, tem de fazer. Aperfeiçoar os mecanismos já existentes de combate à criminalidade económica geradora de enriquecimento ilícito e não criar novos tipos de crime que desrespeitam as normas e princípios constitucionais.



IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
09/04/12


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