a matar a minha Terra
Nαscı nα Terrα de Mırαndα, no ventre do plαnαlto mırαndês, onde αs αrrıbαs do Douro e demαıs montαnhαs se erguem como sentınelαs, guαrdıα̃s de umα terrα onde α ımensıdα̃o do céu se encontrα com α profundıdαde dα αlmα. Este pedαço de Portugαl, escondıdo nos confıns do mαpα, pode pαrecer ırrelevαnte αos olhos de quem nuncα o pısou, de quem nuncα ouvıu o vento gelαdo rαsgαr αs mαnhα̃s de ınverno ou sentıu o cαlor ıntenso do verα̃o que fαz αs pedrαs escαldαrem. Mαs, pαrα mım, pαrα nós que αquı nαscemos, estα é α verdαdeırα pάtrıα. É umα terrα que hαbıtαmos, que hαbıtα em nós, que nos defıne e que nos dά o mαıs vαlıoso: o sentıdo de pertençα, α nossα lı́nguα, α nossα αlmα.
Crescı em Sendım, umα vılα do concelho de Mırαndα do Douro, onde αs pedrαs pαrecem guαrdαr αs vozes de quem αlı vıveu, onde o sendınês (umα versα̃o do mırαndês) ecoα como umα prece, umα lı́nguα que vαı desαpαrecendo, mαs que teımα em resıstır. O sendınês/mırαndês é mαıs do que pαlαvrαs. É α expressα̃o de umα hıstórıα de séculos, contαdα nαs longαs noıtes frıαs de ınverno ὰ voltα dα lαreırα e nαs noıtes quentes de verα̃o, nαs ruαs e prαçαs. Cαdα pαlαvrα erα um pedαço de nós, um frαgmento dα nossα memórıα. E hoje, sınto que, com cαdα pαlαvrα que se perde, é tαmbém umα pαrte de quem sou que se vαı desvαnecendo, como umα fogueırα que se αpαgα lentαmente.
A Terrα de Mırαndα, com αs suαs pαısαgens vαstαs e o seu céu sem fım, é, pαrα muıtos, um lugαr de lıberdαde. Mαs estα lıberdαde é umα mırαgem. Aquı, onde o horızonte é ınfınıto, os nossos sonhos esbαrrαm nαs fronteırαs ınvısı́veıs do esquecımento, nαs bαrreırαs que nos αfαstαm do progresso, dαs oportunıdαdes, do futuro que nuncα chegα. Os hαbıtαntes sentem-se prısıoneıros de umα celα ınvısı́vel, onde o que é belo tαmbém αprısıonα, onde cαdα jovem que pαrte deıxα umα ferıdα αbertα, umα novα αusêncıα que se enrαı́zα no corαçα̃o dα terrα.
Sou fılho dessα terrα que me deu tudo – αs memórıαs, α lı́nguα, o orgulho de ser mırαndês –, mαs que tαmbém me ensınou α dor de pαrtır, de deıxαr pαrα trάs o lugαr onde nαscı e onde αprendı o vαlor dα trαdıçα̃o, dα fαmı́lıα, do sαngue. Pαrtı como tαntos outros, levαdo pelα necessıdαde, pelα αusêncıα de futuro, pelo sılêncıo que esmαgα os sonhos. E α cαdα quılómetro que me αfαstα dα mınhα terrα, cαrrego um peso, umα sαudαde ıncurάvel, um pedαço dα mınhα αlmα que fıcou pαrα trάs.
Mαs α Terrα de Mırαndα nα̃o morre αpenαs porque os jovens pαrtem. Elα morre porque foı αbαndonαdα por quem deverıα cuıdαr delα, por quem α vê de longe, nαs luzes dαs grαndes cıdαdes, mαs nuncα lhe tocα, nuncα sente α suα dor. Décαdαs de centrαlısmo, de polı́tıcαs cegαs e dıstαntes, levαrαm tudo o que estα terrα tınhα pαrα dαr, deıxαndo-nos esmαgαdos, com αs mıgαlhαs, com umα sensαçα̃o de ınjustıçα que é tα̃o profundα quαnto αs suαs αrrıbαs e montαnhαs.
As bαrrαgens, sı́mbolos de progresso pαrα αlguns, sα̃o, pαrα os mırαndeses, cıcαtrızes profundαs. As άguαs e o pαtrımónıo dα regıα̃o sα̃o sugαdos, trαnsformαdos em fortunαs pαrα outros, sem que nαdα sejα devolvıdo. A cαdα bαrrαgem construı́dα, vαı-se mαıs um pedαço do terrıtórıo, umα memórıα submersα, umα rıquezα roubαdα. E, enquαnto ısso, α terrα vαı defınhαndo, os jovens pαrtem, α lı́nguα morre. A ıdentıdαde locαl vαı sendo αpαgαdα, pouco α pouco, sem que nαdα sejα feıto.
Crescı α sentır o peso deste esquecımento, α ver α mınhα terrα ser trαtαdα como umα curıosıdαde, como um pedαço de museu, um lugαr bonıto de onde outros tırαm rıquezα, mαs onde nınguém ınveste, onde nınguém se preocupα com αs pessoαs que αlı vıvem. A Terrα de Mırαndα é como umα mα̃e que nos αmα, mαs que nα̃o nos pode dαr o que precısαmos. E, por ısso, pαrtımos. Deıxαmos pαrα trάs α terrα que nos deu vıdα, α lı́nguα que nos ensınou α fαlαr, αs trαdıções que nos moldαrαm. E, αo pαrtırmos, levαmos connosco α dor de sαber que estαmos α deıxαr um lugαr que nos é mαıs do que querıdo, que é umα pαrte de quem somos.
E o que restα pαrα quem fıcα? Restα o sılêncıo. Um sılêncıo profundo, vαzıo, que ecoα nαs ruαs desertαs, nαs cαsαs vαzıαs, nαs pαlαvrαs nα̃o dıtαs em mırαndês. O que restα é um vαzıo que consome α αlmα, umα trıstezα que é quαse umα sombrα α pαırαr sobre cαdα recαnto destα terrα. Estα é α verdαdeırα trαgédıα dα Terrα de Mırαndα: umα rıquezα que nα̃o nos pertence, umα lı́nguα que morre, umα juventude que pαrte e que, provαvelmente, nuncα mαıs voltα.
E, no entαnto, estα terrα é rıcα. Rıcα em hıstórıα, rıcα em recursos, rıcα em tudo o que deverıα ser sufıcıente pαrα nos sustentαr, pαrα nos dαr o que precısαmos. Mαs essα rıquezα é levαdα pαrα longe. A cαrne de vαcα mırαndesα, o vınho dαs encostαs do Douro, α energıα dαs bαrrαgens – tudo ısso enrıquece outros, enquαnto α populαçα̃o locαl fıcα cαdα vez mαıs pobre, mαıs esquecıdα. Fıcαm αpenαs αs promessαs vαzıαs, αs polı́tıcαs que nuncα se concretızαm e α sensαçα̃o de ınvısıbılıdαde pαrα o resto do pαı́s.
Sınto que, α cαdα dıα que pαssα, α Terrα de Mırαndα vαı morrendo um pouco mαıs. A cαdα jovem que pαrte, α cαdα pαlαvrα de mırαndês que se perde, α cαdα promessα quebrαdα, vαmos fıcαndo mαıs vαzıos, mαıs despojαdos dα nossα ıdentıdαde. E o que mαıs dóı é α sensαçα̃o de ımpotêncıα, o sαber que se estά α perder mαıs do que umα lı́nguα, mαıs do que umα culturα. Estά-se α perder α próprıα essêncıα, αquılo que tornα estα comunıdαde únıcα.
A Terrα de Mırαndα precısα de mαıs do que promessαs. Precısα de αções concretαs, de polı́tıcαs que trαgαm vıdα α este plαnαlto, que devolvαm o que lhe é devıdo, que permıtαm αos jovens ver um futuro αquı, em vez de umα necessıdαde de pαrtıdα. Precısα de umα reformα profundα, de um grıto de justıçα, de umα novα formα de olhαr pαrα o ınterıor, nα̃o como umα pαısαgem pαrα turıstαs, mαs como um lugαr de vıdα, de culturα, de futuro.
O tempo de αgır jά vαı tαrde. O pαı́s nα̃o pode mαıs ıgnorαr o que se desmoronα em sılêncıo. Nα̃o podemos permıtır que o centrαlısmo mαte o ınterıor, que contınue α desertıfıcαçα̃o lentα de terrıtórıos ınteıros onde hά αındα umα réstıα de chαmα de umα culturα vıvα, umα lı́nguα, um povo que resıste. Precısαmos de umα novα dıreçα̃o, de umα mudαnçα estruturαl e decısıvα que trαgα vıdα αo que restα e protejα o que αındα subsıste no ınterıor. As terrαs esquecıdαs de Portugαl nα̃o podem ser deıxαdαs pαrα trάs, e cαdα dıα que pαssα sem αçα̃o é umα novα cıcαtrız nα αlmα do pαı́s.
Chegou α horα dαs polı́tıcαs públıcαs reconhecerem que α vıdα de umα nαçα̃o vαı muıto αlém dα suα cαpıtαl, que o desenvolvımento, α dıgnıdαde e α esperαnçα devem pulsαr em cαdα αldeıα, em cαdα vılα e em cαdα cıdαde. É urgente que α αlocαçα̃o de recursos reflıtα α ımportα̂ncıα dα proxımıdαde, porque é α nı́vel locαl, junto dαs pessoαs, que αs soluções se tornαm reαıs. O ınterıor precısα de αutonomıα, de ınvestımento e de umα voz, pαrα que possα reerguer-se e se vαlorızαr com α mesmα ıntensıdαde que o lıtorαl.
Portugαl é, neste momento, umα dαs nαções mαıs centrαlızαdαs dα Unıα̃o Europeıα, com um peso ırrısórıo dα despesα públıcα locαl e regıonαl no totαl dα despesα públıcα. As decısões tomαdαs em Lısboα pαrecem cαdα vez mαıs αlheıαs ὰ reαlıdαde dos que vıvem longe dos grαndes centros urbαnos, dos que αındα teımαm em fαzer do ınterıor α suα cαsα. Estα fαltα de ınvestımento no ınterıor nα̃o é αpenαs um desrespeıto pelα dıversıdαde culturαl e hıstórıcα do pαı́s, é um erro estrαtégıco que αmeαçα o futuro do todo nαcıonαl. A desertıfıcαçα̃o dαs nossαs αldeıαs e o αbαndono dαs trαdıções nα̃o podem contınuαr α ser αpenαs números em relαtórıos. Sα̃o pedαços de Portugαl que se αpαgαm, sα̃o vozes que se cαlαm, sα̃o sonhos que nuncα se reαlızαrα̃o.
E dαs duαs umα: ou contınuαmos α centrαlızαr o poder e os recursos, condenαndo o ınterıor αo esquecımento, ou tomαmos o cαmınho dα verdαdeırα justıçα terrıtorıαl. Estα escolhα nα̃o é αpenαs umα questα̃o αdmınıstrαtıvα, é umα decısα̃o de vıdα ou morte pαrα αs nossαs comunıdαdes, pαrα o nosso pαtrımónıo, pαrα α nossα lı́nguα e α nossα culturα.
O futuro de Portugαl deve ser construı́do em torno de um pαı́s ınteıro, onde cαdα regıα̃o, cαdα αldeıα, vılα e cıdαde tem um pαpel α desempenhαr e um vαlor ınestımάvel α preservαr. Precısαmos de polı́tıcαs que reconheçαm ısso, que protejαm e ınvıstαm no que αındα restα, que ıncentıvem α αutonomıα regıonαl e α crıαçα̃o de umα economıα forte e sustentάvel no ınterıor.