.
Pela proteção dos
devedores contra
os fundos abutres
Num país em que a segurança na habitação vem da propriedade através do
endividamento bancário e o crédito ao consumo serve muitas vezes de
complemento ao salário baixo, a vulnerabilidade dos devedores é enorme. É
urgente garantir a decência no tratamento dos devedores.
Depois da crise financeira e da crise das dívidas soberanas, a União Europeia, como parte do projeto de integração, apressou o sistema bancário a limpar os seus balanços do incumprimento massivo.
O crédito não produtivo, ou seja, aquele considerado irrecuperável pelos bancos, consolidou-se como um instrumento financeiro em si mesmo, apetecível para fundos de investimento que se especializam na recuperação da dívida. O seu resultado financeiro vem, exatamente, da miséria de quem não consegue fazer face à sua dívida, daí o seu nome popular – “fundos abutres”.
Para lá da moralidade questionável deste negócio, este segmento do sistema financeiro desenvolveu-se à margem da regulação, fazendo parte da chamada “banca sombra”. Uma das consequências mais tangível é que estes fundos não são obrigados a garantir a proteção dos consumidores como o sistema bancário tradicional é, nomeadamente através de mecanismos claros para negociação em caso de incumprimento ou perante o risco de.
Em 2021, foi aprovada uma diretiva europeia para reconhecer um mercado secundário para venda de crédito malparado. O principal objetivo era a normalização e garantia da previsibilidade nas transações, tornando este mercado mais rentável. A preocupação sobre a proteção dos devedores vulneráveis era secundarizada, sendo a redação sobre a sua defesa pouco consequente. No entanto, deixava duas indicações sobre esta matéria: os adquirentes e gestores de créditos deveriam dar as mesmas proteções aos consumidores que os bancos e que estas entidades fossem reguladas pela autoridade nacional entendida como competente.
Note-se que uma diretiva dá, por natureza, espaço de manobra aos países para fazerem a devida interpretação em conformidade com o seu direito nacional e, diga-se, com as escolhas políticas do governo em funções. Portugal tinha até dezembro de 2023 para transpor a diretiva, o governo do PS não o fez e o do PSD tardou.
Em fevereiro, o Bloco de Esquerda apresentou um projeto de lei que materializava e reforçava o que estava só vagamente previsto na diretiva em matéria de defesa dos consumidores. Quatro pontos são especialmente importantes. Primeiro, a obrigatoriedade de notificação clara pelo banco aquando da cedência do crédito a uma entidade terceira e direito a oposição dos devedores. Com o especial detalhe de, em caso de crédito hipotecário sobre habitação própria permanente, a oposição implicar a suspensão da venda até que seja alcançado um acordo entre as partes. Segundo, obrigatoriedade de normas de boa conduta e informação detalhada aos devedores pelas empresas que compram o crédito malparado e pelas subcontratadas que fazem a coleta de dívida. Terceiro, enquadrar os adquirentes e gestores de crédito no Decreto-Lei nº 227/2012, o qual cria uma rede extrajudicial de apoio à regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários, o chamado PARSI e PERI. Traduzindo: obrigar os novos detentores do crédito a terem mecanismos para renegociar a dívida e ter planos de pagamento. Por último, regulação pelo Banco de Portugal, passando estes fundos a estar sujeitos à sua supervisão prudencial, e reporte obrigatório da qualidade e quantidade das carteiras vendidas. Foi a isto que o PSD e o CDS se opuseram, a IL, o PS e o Chega se abstiveram.
Na semana seguinte, o governo aprovou uma proposta de lei no Conselho de Ministros para transpor a diretiva europeia. Não sabemos o conteúdo desta proposta e com o atual contexto político não saberemos. O que fica claro com a rejeição das propostas do Bloco pelo PSD e o CDS, e que importa lembrar nos próximos tempos, é que escolhem o lado predatório do mercado financeiro em detrimento da proteção das pessoas.
Num país em que a segurança na habitação vem da propriedade através do endividamento bancário e o crédito ao consumo serve muitas vezes de complemento ao salário baixo, a vulnerabilidade dos devedores é enorme. É urgente garantir a decência no tratamento dos devedores e, mais ainda, não deixar para trás a defesa de um Estado Social forte que não empurre as pessoas para a dívida como forma de sobrevivência.
* Economista
IN "ESQUERDA"- 14/03/25
.