Anda maldição no ar. Só isso explica que a cada decisão judicial corresponda uma polémica nacional. Será por estarmos na época de defeso do futebol? Será que faltam incêndios para lamentar? Será este espírito lusitano de tudo discutir com paixão?

Não parece o caso. O problema está mesmo na Justiça. Certamente não nas leis que todos dizem ser boas e em número mais do que suficiente. Talvez também não nos polícias, advogados e magistrados, que tanta gente diz terem excelente preparação. Mas se assim é, então porque sentimos que impera a arbitrariedade? Há seguramente uma razão.

Só pode ser a arrogância da Justiça, que essa obviamente não falta. E que, de resto, deita por terra todo o prestígio que as restantes qualidades dos atores do teatro judicial possam ter.

Recuemos uns anos. Ao tempo em que os médicos falavam e os doentes não percebiam o que eles diziam. Valiam os enfermeiros e os farmacêuticos para descodificar. Até que os médicos perceberam que não podiam exercer bem a sua profissão se não se fizessem entender, se o doente não percebesse de que sofria, a importância da maleita, a necessidade de tratamento. Acabaram por se dessacralizar e ficaram saudavelmente mais humildes, passaram a falar de forma que fossem entendidos. Aceitaram, na sua maioria, explicar-se, e, quando assim não é, os doentes já protestam.

Não é assim na Justiça. Vai um juiz e recusa mandar para casa um preso preventivo (José Sócrates, obviamente) porque não quer usar pulseira eletrónica; noutra ocasião, manda para casa, mas com dispositivo de sinalização, um outro arguido (Armando Vara) que já deu inúmeras provas de que não é propriamente um fugitivo (sempre compareceu no Face Oculta e já tem uma condenação pesada, cinco anos de prisão); para completar o leque, agarra outro arguido que já estava em liberdade caucionada e, apesar de a acusação não o ter requerido, decreta-lhe obrigação de permanência na habitação, mas dispensa-o da pulseira (Ricardo Salgado). Põe-lhe polícia à porta. As decisões (proferidas após longos interrogatórios feitos à sexta-feira) são sempre sustentadas com receios similares e, nota curiosa, o juiz nestes casos foi sempre o mesmo (Carlos Alexandre).

Ora sendo um magistrado experiente, o que o leva a ter tão diferentes opções? Como entender? Como ver tudo isto e não esboçar um sorriso de complacência? Haverá certamente razões. Mas então alguém que as explique. Não se escondam no segredo de Justiça para fugirem a justificar-se. Revelem, pelo menos, o que disseram aos advogados do arguido matéria que, obviamente, deixou de ser do exclusivo conhecimento das autoridades.

Quem está sob fogo cerrado há mais de um ano, mas de movimentos livres, se quisesse perturbar o processo, destruir provas ou construir conivências, não o teria feito já? Após oito meses de prisão, se o antigo primeiro-ministro voltar à liberdade pode prejudicar quem e como? 

Alguém acredita que José Sócrates, Armando Vara ou Ricardo Salgado, se o quisessem, não teriam já conspirado o suficiente para fazer desaparecer o que eventualmente poderiam querer que se esfumasse? E não teriam encontrado quem o fizesse por eles, se lho pedissem? E que eficácia tem estarem proibidos de falar com algumas pessoas, estejam presos em casa ou em cadeias, se ninguém está impedido de fazer de pombo correio? Estas devem ser todas perguntas muito estúpidas e sem cabimento. Ou já teria havido alguém interessado, esclarecido e perspicaz que mudasse as regras de comunicação da nossa Justiça por forma a torná-la clarinha, clarinha, para todos entendermos e pormos de lado o receio de que impera (ou pode imperar) a arbitrariedade. E o risível.