02/06/2017

MIGUEL ARAÚJO

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Os fabulosos irmãos Sobral

E eis o que a Luísa e o Salvador fizeram por mim: entraram com tudo. Deram tudo o que tinham, entraram com a vida toda. A Luísa entrou com a melhor música dela. Prestou-se. Eu não me prestaria a isso. Não me prestei. Muito menos no Festival da Canção

Estes meus textos na VISÃO saem de 15 em 15 dias. Se eu quisesse escrever sobre algum tema quente do dia ou da semana, quando esse meu texto fosse publicado já esse assunto seria velho. As coisas acontecem rápido e a mole humana é célere em galvanizar-se ou ofender-se com esta ou aquela peripécia da vida pública. Por isso um artigo a falar do Salvador e da Luísa Sobral será já coisa dos jornais-invólucro que servem para embalar objetos domésticos que estarão neste momento a ser acondicionados em caixotes, rumo ao olvido último a que todas as coisas se destinam. Mas isso são os jornais, isso são os artigos como este. Eu queria discorrer sobre uma coisa que fica. Que é de ficar, que em mim ficou. Quero eu dizer: gostava muito de agradecer, com toda a sinceridade e coração, aos famosos irmãos Sobral. Não pela “música portuguesa”. Quem sou eu. Mas por mim. Porque também faço músicas, porque as toco, porque as canto por aí. É essa a minha profissão, é esse o meu trabalho. A minha vida.

É repetitivo. É cansativo. É maravilhoso. Uma pessoa parte-se toda. É uma coisa especialíssima, um milagre. Uma pessoa expõe-se. Expõe-se ao ridículo, aos aplausos, ao público. Sei lá dizer. Uma pessoa vai e dá a cara, dá o corpo todo. E eis o que a Luísa e o Salvador fizeram por mim: entraram com tudo. Deram tudo o que tinham, entraram com a vida toda. A Luísa entrou com a melhor música dela. Prestou-se. Eu não me prestaria a isso. Não me prestei. Muito menos no Festival da Canção. Pegou nesse talento milagroso que é o dela e foi. Quantas vezes uma pessoa incorre nesse que é o maior, o único, o mais mortal de todos os pecados, que é o de ficar aquém. Era concurso, era festival, era mau e ela dignou-se, dignificou-se, ao entrar com tudo. Sem ironias e sem reservas. E o mesmo fez o Salvador. Deu tudo pela música. Aquela atitude displicente foi bastante especial, pois não é fácil. Sabe Deus que, se fosse eu, entraria por uma ponta a ser quem sou e sairia do lado de lá de trança e lantejoulas. Transformado num berlinde, sei lá. Ele teve a confiança de manter uma certa displicência elegante e isso foi notável. Mas o que interessa é que nunca foi displicente na música. Deu o melhor. Quando se gosta de música, é assim. Para que a música saia bem. Não é o “dar tudo” dos programas de caça-talentos, aquela gritaria. É uma entrega que tem a ver com a música não se desmantelar. É uma coisa dificílima. O Salvador nunca facilitou, podia ter sido irónico, kitsch, displicente na música. Foi a ausência disso tudo. Não facilitou nem um greiro. Isso é que é. É esse o milagre da multiplicação dos pães. Um rapazinho que entrou com tudo o que tinha. Vem na Bíblia. Deu os pães todos que trazia consigo. Quando fazemos isso, o milagre acontece. E eu, como toda a gente, falho constantemente. É por isso que lhes sou agradecido. Eu vi aquilo e tornei-me melhor artista por causa disso. Uma vez, num concerto na Marinha Grande, o Rogério Santos, baterista, caiu para o lado, teve que ser assistido pelos bombeiros. Foi impressionante. Mas gostar de música é isso. Nem que ele morresse, a música não se podia desmantelar. É uma coisa preciosa e não pode morrer a meio. Como dizer? Dei alguns dos melhores concertos da minha vida agora, ultimamente, sob esta preciosa influência. Às vezes estou em palco todo roto, cansado, sem voz, e basta-me meter na ideia o Salvador a cantar e começo imediatamente a cantar melhor. Literalmente. Aquela imagem, aquilo que toda a gente viu na televisão, operou em mim um milagre muito concreto. Às vezes dou por mim a facilitar numa palavra, numa nota duma música que esteja a escrever e lembro-me da Luísa. É mesmo assim: é um bálsamo, uma oração. Estamos em crise porque vivemos abaixo das nossas possibilidades.

E é por isso que gostava de lhes agradecer muito aquilo que eles fizeram por mim

IN "VISÃO"
25/05/17

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