O
“politicamente correcto”
“politicamente correcto”
não serve
A justiça, ao contrário das estátuas à porta dos tribunais, não é cega.
Mais uma vez, isso é um desejo nosso mas não um facto palpável. É um
fenómeno social sujeito à cultura vigente
As atitudes “politicamente correctas” de pouco ou nada servem perante a
prisão de Sócrates. Não passam de um artifício para esconder o que cada
um realmente pensa e deseja. Por dever de ofício, os profissionais do
sistema judiciário invocam ritualmente a “presunção de inocência” mas há
sempre alguém para violar o sacrossanto “segredo de justiça”. É nestas
ocasiões que se cita a “separação de poderes” entre a justiça e a
política, que já foi desmontada por numerosos tratadistas, como Pedro
Bacelar de Vasconcelos na sua crítica à operação do aparelho de justiça
no nosso país.
Historicamente, é preciso ter consciência que, ao
preconizar a separação dos poderes executivo, legislativo e judicial, o
filósofo francês do século XVIII Montesquieu não estava a garantir que
tal sucedesse obrigatoriamente na política concreta, mas sim que era um
valor que deveria vigorar num sistema representativo como pretendem ser
os actuais regimes demo-liberais. Não se trata de uma realidade empírica
mas de um princípio ético regulador.
A justiça, ao contrário das estátuas à porta dos tribunais, não é
cega. Mais uma vez, isso é um desejo nosso mas não um facto palpável. É
um fenómeno social sujeito à cultura vigente, a começar pelas crenças
dos membros do aparelho judicial. A opinião pública, assim como os
agentes políticos e comentadores, sabem isso e actuam em conformidade.
Tipicamente, tirando o antigo primeiro-ministro e dos seus eventuais
cúmplices, as duas pessoas mais interessadas no resultado do processo
são, por razões óbvias, o actual primeiro-ministro, Passos Coelho, e o
seu rival António Costa. Ora, ambos invocam a “separação entre a
política e a justiça” para não se pronunciarem sobre o caso.
Todavia,
como é igualmente óbvio, esta atitude comum entre eles obedece a
perspectivas diametralmente opostas, já que a evolução do processo pode
ser decisiva para as suas respectivas aspirações eleitorais dentro de um
ano. O mesmo se diga dos candidatos à Presidência da República que
venham a surgir entretanto, esteja o processo concluído ou não.
Portanto, o “politicamente correcto” não só não explica nada, como
impede de perceber o que está em causa, neste caso a corrupção política,
tenha ela objectivos pessoais ou partidários, já que, sejam quem for os
beneficiários, os custos materiais e simbólicos serão pagos pela
colectividade nacional. O processo, pois, é eminentemente político. Seja
qual for o seu desenlace, que não é de esperar que venha a ter lugar
rapidamente, ao contrário da justiça célere que se proclama, provocará
toda a espécie de estilhaços daqui até lá. A evolução do processo e o
seu resultado final não deixarão ninguém indiferente, desde os partidos,
que não deixarão de rever os seus cálculos eleitorais dia a dia, até
aos «revanchistas» que murmuram: “Cá se fazem, cá se pagam”!
Todos os protestos em sentido contrário são destituídos de verdadeira
convicção. Entre os que preconizam o silêncio, apenas se distinguem
pelas vantagens que esperam desse silêncio para as suas próprias
preferências políticas, incluindo a abstenção eleitoral. Esta poderá
ser, aliás, uma das principais consequências do processo Sócrates,
sobretudo se este se prolongar sem explicações nem esclarecimento da
situação, alimentado assim aquela distância crescente entre os eleitores
e os partidos que, em Portugal, já é uma das maiores da União Europeia.
Por sua vez, o aumento da abstenção terá por efeito inflacionar o poder
real de todo o género de movimentações populistas, apresentem-se elas
com que as cores se apresentarem, desde um Marinho Pinto, que não perdeu
a ocasião de se pronunciar no limite do “politicamente correcto” apesar
da sua condição de advogado, até aos fragmentos cada vez menores em que
o Bloco de Esquerda tem estado a dividir-se. O PCP cresceria de modo
semelhante, tornando ainda mais complicada do que já tem sido, desde o
25 de Abril, a formação de um governo estável e com ampla base social
para fazer o que tem de ser feito.
Por seu turno, os dois candidatos à vitória estão cada vez menos
seguros das suas hipóteses, especialmente o PS, que foi devolvido pela
prisão de Sócrates ao tempo das suas origens, quando teve de escolher
entre a pulsão esquerdizante acirrada pela “austeridade” e a sua vocação
de governo.
O “politicamente correcto” serve, finalmente, para ocultar o facto de
a personalidade do antigo primeiro-ministro, para usar uma palavra
neutra, não contribuir para facilitar as coisas. O que quer ele dizer,
com efeito, quando proclama de dentro da prisão que se sente “mais livre
do que nunca”, ao mesmo tempo que diz ao PS para não se meter no
assunto? Sócrates era daqueles que não deixava ninguém indiferente com
aquela forma de mandar que ele tinha: “Quem não está comigo, está contra
mim”! Só uma coisa é certa no meio deste terremoto: o ambiente das
próximas eleições e a formação do próximo governo serão tremendos. Ainda
nos podem custar mais sacrifícios dos que já fizemos!
IN "OBSERVADOR"
30/11/14
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