Horror e amnésia
Um homem matou com uma facada no coração um filho de seis meses, em
Linda-a-Velha, por represália contra a mulher que não queria viver mais
com ele. Outro homem matou à pancada uma enteada de dois anos, em
Loures, depois de agressões continuadas contra um irmão da vítima. Os
dois acontecimentos ocorreram quase em sequência, na última semana, e os
assassinos eram desempregados com problemas de alcoolismo e violência.
Dias depois, um terceiro homem disparou contra duas mulheres numa
pastelaria em Alijó, matando uma delas e ferindo gravemente outra:
motivo alegado, o fim do namoro com a segunda.
Estes são apenas fait-divers recentes que ilustram uma parte cada vez
mais visível do quotidiano português. A violência doméstica encadeia-se
em sucessivos casos, com algumas características comuns: famílias
desintegradas, rupturas sentimentais, situações de desemprego e
marginalidade social, localização em bairros das periferias urbanas ou
no interior profundo do país, dependência frequente do álcool e drogas
por parte dos autores dos crimes.
A inquietante banalização destes acontecimentos brutais - e dos
limites do horror já atingidos com o assassinío de crianças - exige um
estudo sociológico profundo da terrível realidade que está a emergir da
crise económica e social em que mergulhámos. Mas, enquanto isso não
sucede - e espera-se que não demore - importa reflectir, desde já, no
quadro mais vasto em que vai crescendo este surto de criminalidade cujas
vítimas são, frequentemente, os mais fracos e indefesos, protagonistas
acidentais de notícias de abertura mais ou menos sensacionalistas de
telejornais e manchetes popularuchas para vender papel.
Que país é este onde a mancha dos horrores vai alastrando enquanto se
instala uma espécie de amnésia e as atenções se refugiam num frívolo
folclore político de que as candidaturas às presidenciais constituem um
exemplo revelador? Eis uma questão que deveria despertar as
consciências.
A violência doméstica tornou-se um verdadeiro cancro nacional: um
terço dos homicídios são passionais, como recordava um artigo da
anterior edição do SOL, apesar da confusão de estatísticas que impede um
retrato rigoroso do problema. E há ainda, conforme noticiava o Público
esta semana, um aumento anual de 50 por cento de queixas de violência no
namoro em meio escolar.
Entre a família, formal ou informal, e a escola, o cancro da
violência tende, pois, a metastizar-se, pondo a nu a vulnerabilidade
crescente da coesão social. Vivemos numa sociedade gravemente doente,
mas que foge a admiti-lo.
As formas mais atrozes de violência devem ser exemplarmente punidas -
e nunca encaradas de forma laxista -, mas também é certo que a sua
expansão coincide com o apodrecimento de referências éticas em múltiplos
domínios da vida portuguesa, nomeadamente o mundo político e a
administração pública.
Basta recordar os recentes casos dos vistos gold ou da 'lista VIP'
dos contribuintes, com a revelação das sórdidas redes de promiscuidade e
troca de favores entre sectores da política, dos negócios e do alto
funcionalismo do Estado para concluirmos até que ponto descemos na
escala de valores de uma sociedade civilizada. Expandiu-se uma atmosfera
propícia à imunidade e ao salve-se quem puder.
Dir-se-á que isso não constitui propriamente uma novidade, mas
porventura nunca como agora se assistiu a um strip-tease tão indecoroso
dos costumes públicos. A própria linguagem com que os responsáveis
comunicam uns com os outros no seu tráfico promíscuo atinge níveis de
uma boçalidade inimaginável - como nas conversas divulgadas sobre os
vistos gold.
Boçalidade é, também, o que caracteriza os comentários de membros de
diferentes áreas da magistratura (!) em sites e redes sociais a
propósito do caso Sócrates. Não há decoro, reserva, sentido da dignidade
e da isenção, o que não só compromete o respeito supostamente devido à
Justiça como coloca alguns dos seus agentes no mesmo plano linguístico
rasca dos delinquentes vulgares. Mas, provavelmente, trata-se de matéria
coberta pela impunidade corporativa…
Enquanto se cultivam abstracções económicas e miragens de
crescimento, a sociedade corre o risco de apodrecer nas suas fundações,
entre o crescendo da violência contra os indefesos, a imoralidade das
práticas no funcionamento do Estado e até na linguagem cavernícola que
se vulgarizou entre políticos, altos funcionários e magistrados. Nos
bastidores do 'combate à crise', a que estado moral é que chegámos?
Entre o horror e a amnésia, a distância é curta.
IN "SOL"
20/04/15
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