25 anos sem dormir
O PÚBLICO celebra hoje 25 anos de vida nas bancas; há poucos meses
cumpria eu as minhas bodas de prata de emigrado em Inglaterra. Tirando
esta tangencial coincidência, há muito pouco em comum entre mim e este
jornal.
Achei pois surpreendente terem-me escolhido – um mero
cientista – para fazer de senhor director por um dia, especialmente
havendo pelo burgo tanta gente muito mais habilitada do que eu para
cagar postas de pescada. O email de convite prometia ainda
“completa liberdade” para fazer o que me desse na real gana com o
jornal. Um sorriso maroto deve ter-me aparecido no rosto.
Suponho
que se quisesse dar à ciência mais “protagonismo” (para usar um vocábulo
à Luís Figo) num país com mais orgulho, e com razão, nas suas proezas
futebolísticas e tauromáquicas. Um país também onde a ciência continua a
ser o parente pobre da produção intelectual, recheada de ilustres
músicos e escritores, poetas e malucos vários. Só que a ciência que eu
faço e amo não são telemóveis nem foguetões – é poesia. E depois tenho
um segredo vergonhoso: antes de ser cientista tive pretensões
jornalísticas, num sentido muitíssimo lato do termo. Ao pedirem-me um
editorial acerca das minhas relações com a imprensa senti pois um certo déjà-vu.
Recordo
aqui a minha adolescência lusitana e um certo pasquim de bênção
louçânica, onde escrevinhávamos uns quantos sobre coisas como a
legalização do aborto (quando isso ainda era monopólio de esquerdelhos),
num estilo cheio de parvoíces e bacoradas. Mas esses desbragamentos
foram sol de pouca dura e em breve caí no buraco negro que é fazer
ciência. O universo dá-me uma enorme trabalheira, é uma estopada, não
deixa grande tempo para fazer outras coisas. Não admira que tanta gente
deixe os mesteres cósmicos para a religião, Deus que se amanhe, enquanto
nós mortais nos dedicamos à comunicação social.
No início dos
anos 90 mudei-me para Inglaterra, com uma jura a pés juntos de que
mulheres portuguesas nunca mais. Enquanto por lá, perdi completamente o
respeito pela imprensa. A grande maioria dos media ingleses são
uma desgraça, e isto vai muito para lá dos infames tablóides. A receita
é simples: aferir o que deixa o bife tradicional indignado e seguro da
sua superioridade, inventar histórias que sirvam o ângulo, procurar
factos que as assistam, inventá-los, se não os há, suprimi-los, se as
contradizem... e pronto, vendas asseguradas, e tudo com infinitas
pretensões de objectividade mediática.
A generalização é injusta, claro está, aliás, como em tudo, também no
jornalismo os britânicos têm o pior e o melhor. Mas a única coisa que
hoje leio com regularidade por terras de Sua Majestade é o Private Eye, uma espécie de Charlie Hebdo,
mas muito melhor, mistura de humor cáustico e jornalismo de
investigação do mais fino. Que haver assunto há: corrupção é o que não
falta em Inglaterra. Corrupção perfeitamente legalizada, entenda-se, não
é como em Portugal ou Itália, povos muitíssimo inferiores à Europa
Nazi-de-Espírito-do-Norte.
Quis entretanto o acaso trazer-me de
regresso à pena, desta vez em fainas de divulgação científica. Entre
coisas menos laudatórias, chamaram a um dos meus livros uma “biografia
gonzo”, de outro disse-se que era onde “Medo e Delírio em Las Vegas se cruza com Uma Breve História do Tempo”.
Eu nem sabia o que queria dizer o termo “gonzo” ou que tinha a ver com
jornalismo, já disse que para cagar de alto erudição o PÚBLICO podia ter
escolhido melhor. Foi um amigo de Roma, adepto de cocaína e
alucinogénios, que me corrigiu o défice cultural, obrigando-me a ler uma
catrefada de livros de Hunter S. Thompson e Acosta, alguns em tradução
italiana.
Fiquei deslumbrado com aquilo. E, se em vez de os
jornalistas fingirem que são objectivos, coisa que nem a ciência é,
exibissem os seus preconceitos na montra, polvilhados com drogas duras? E
se os jornais ingleses dissessem abertamente “somos uma cambada de
porcos xenófobos que andam alegremente a inventar histórias”? Não
mereceriam finalmente uma pitada de respeito? O jornalismo gonzo
certamente que me surgiu como um antídoto a muita hipocrisia. Por isso,
quando me convidaram para ser director por um dia do PÚBLICO, foi isso
que me ocorreu: fazer uma edição "gonzo" do jornal. Afinal tinham-me
prometido a mais completa liberdade no aliciante email de convite. Por um dia.
Mas
é claro que isso da “liberdade completa” é coisa que não existe. Nem em
utopias nos despimos de constrangimentos. Seria porventura razoável
exigir à redacção do PÚBLICO que passasse um dia a tripar com LSD e a
escrever sobre a situação económica da Grécia em textos em que deveriam
misturar relatos da própria vida sexual? Talvez sim, talvez não. Afinal é
uma festa de anos.
Há uma fina linha entre ser-se uma figura
decorativa e um tirano. Um jornal bem-sucedido é um trabalho de
grupo, em que o colectivo é mais importante do que qualquer ronáldico
ponta-de-lança. A redacção do PÚBLICO fugiu com as minhas sugestões e
fez com elas o que quis. Que festejem bem. Que continuem assim até às
bodas de ouro.
* Cientista
IN "PUBLICO"
05/03/15
* Apresentamos a todos os trabalhadores do "PÚBLICO" sinceros parabéns, desejando continuidade na luta por um jornalismo sem medo.
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