A esquerda matrioska
Tal como os óculos 3D do cinema, o manifesto 3D filtra a realidade, esbate os contrastes e simula uma profundidade que não existe.
A esquerda portuguesa decidiu que era hora de agir e convergir. E o
primeiro passo para a convergência foi a divergência de iniciativas e de
projectos.
A nossa esquerda tem um
carácter tão buliçoso que é possível que os vários movimentos/partidos
que agora estão a alourar venham em breve a desentender-se sobre quem
deseja mais o entendimento. Por exemplo, eu pensava que o novo partido
de esquerda que desejava a convergência era o LIVRE, do Rui Tavares.
Mas, de repente, eis que surge um novo “pólo político” de esquerda, de
Daniel Oliveira et al., que ainda deseja mais a convergência do
que o LIVRE, na medida em que quer convergir com o próprio partido
LIVRE, embora o LIVRE ainda não seja um partido.
.
.
Confusos?
Juntem-se ao clube. Uma pessoa põe-se a ler o ainda fresquíssimo
“roteiro para a convergência” do LIVRE e descobre que para o partido que
ainda não é partido essa é uma questão “primordial”. Uma pessoa põe-se a
ler o “manifesto 3D” dos 65
senhores-que-não-estão-filiados-em-partidos-mas-são-super-de-esquerda e
descobre que para o movimento que não é movimento essa é uma questão
central. Pergunta ingénua: mas então porque é que aqueles 65 senhores
não aderem antes ao LIVRE, que chegou primeiro, tendo em conta que todos
defendem o chuto no rabo da troika, a perfeição da Constituição, o socialismo e – ponto muito importante – a acção política e a possibilidade da governação?
A
única resposta possível é esta: porque o LIVRE não é suficientemente
convergente na sua convergência. O LIVRE é apenas um partido enquanto os
65 em 3D são um “pólo”. Ora, pelos vistos, no jogo “pedra, papel ou
tesoura” da esquerda portuguesa, o “pólo” ganha ao partido. Daniel
Oliveira embrulha Rui Tavares. Significa, então, que os 65 em 3D não vão
de certeza fundar um partido, em nenhum momento da História de
Portugal? Eehrrr… não é bem assim, até porque existe o problema de
listas de cidadãos independentes não poderem concorrer a eleições
europeias nem legislativas. A solução encontrada por Daniel Oliveira,
que em tempos já defendera no Expresso a necessidade de um
“novo sujeito político”, tivesse ele “a forma de movimento, frente,
coligação ou qualquer outra coisa” (o “qualquer outra coisa” era o
“pólo”), é esta: “Começamos pela vontade e pelo conteúdo, depois iremos à
forma.”
Começar pela vontade e pelo conteúdo e depois ir à forma
poderia perfeitamente ser o lema inscrito no brasão da esquerda
portuguesa. Porque eles querem todos o mesmo, mas não querem todos o
mesmo da mesma maneira. Daí que aquilo que se está a passar neste
momento seja a esquerda matrioska elevada à sua máxima potência – uma
boneca russa tamanho XL, cheia de outras bonequinhas no seu interior.
Embora vistas de fora pareçam todas iguais, cada uma delas preza muito a
sua identidade: os 65 em 3D gostariam de englobar o LIVRE, a Renovação
Comunista e o Bloco de Esquerda, que por sua vez engloba, como se sabe, o
PSR, a UDP, e a Política XXI, que por sua vez engloba dissidentes da
Plataforma de Esquerda e do MDP/CDE. É uma canseira de gente para
convergir.
Não há boas notícias no meio disto? Há, claro.
“Manifesto 3D” é um nome perfeito: tal como os óculos 3D do cinema, o
manifesto 3D filtra a realidade, esbate os contrastes e simula uma
profundidade que não existe. Com os óculos postos, pode ser divertido.
Mas quem insistir em ver as coisas como elas são lá terá de ver a nossa
esquerda como ela é: bastante colorida mas completamente desfocada.
IN "PÚBLICO"
19/12/13
.
Sem comentários:
Enviar um comentário