As virtudes de um chumbo
O anúncio da decisão do Tribunal Constitucional
(TC) de chumbar quatro artigos da lei do Orçamento do Estado para 2013
representou, em forma e conteúdo, um momento ímpar da história da nossa
jovem democracia. De uma assentada, o TC lembrou ao país que a
Constituição não está suspensa, colocou um travão na estratégia
orçamental do Governo e escancarou as portas para um novo ciclo do
resgate da República.
De certo modo, a sensação de que a
Constituição poderia ser colocada entre parêntesis foi criada pelo
próprio TC quando, em 2012, afirmou a inconstitucionalidade de algumas
normas do OE, concedendo, contudo, a restrição dos efeitos dessa
decisão. O Governo, pela mão de Vítor Gaspar, resolveu reincidir na
receita, ignorando a pena suspensa a que estava vinculado. O facto de
Cavaco Silva, apesar dos queixumes, não ter solicitado a apreciação
preventiva da constitucionalidade do OE terá ainda reforçado a atmosfera
de exceção. Não faltou mesmo a pressão sobre os juízes do TC, como o
emblemático anúncio de que não haveria plano B para a eventualidade de
um chumbo.
Aquilo que o Governo não percebeu foi que uma segunda
decisão com restrição de efeitos significaria o esvaziamento do próprio
TC e, no limite, o fim do Estado de direito. Este erro grosseiro de
avaliação, desastroso para Passos e Gaspar, foi muito, mas mesmo muito,
positivo para o país. A Lei Fundamental não está, afinal, suspensa!
Estima-se
que o buraco aberto pela decisão do TC seja da ordem dos 1300 Meuro,
algo como 0,8% do PIB. Importa desmistificar a grandeza do problema:
equipara-se aos sucessivos erros das previsões macroeconómicas de Vítor
Gaspar. É caso para perguntar: qual é o drama?
O drama existe
sobretudo para o Governo, na medida em que este vê ruir a sua estratégia
orçamental. Ficam vedadas algumas zonas de corte da despesa, o que
significa que caducou o seu ferramental favorito para a construção de
orçamentos. Não será mais possível continuar a equilibrar a folha de
cálculo de Gaspar através da estratégia reincidente de cortar e taxar de
forma assimétrica, com um fetiche especial pela penalização dos
funcionários da administração pública e dos pensionistas que serviram o
Estado.
Portugal, mercê de uma lamentável sucessão de
pseudopolíticas de (insustentável) desenvolvimento, teve de submeter-se a
um humilhante resgate. A ortodoxia que subjaz a um programa de
assistência contaminado por uma visão de empobrecimento, materializada
pela intensidade dos cortes e imobilização do investimento, foi sendo
reforçada por uma interpretação fundamentalista do ministro das
Finanças, o que resultou num rotundo falhanço das metas. Com a decisão
do TC desta semana, o resgate da República terá necessariamente de
entrar num novo ciclo, que se faz por três vias: a renegociação da
dívida, o deslizamento das metas e o regresso à economia.
Dos
parâmetros clássicos da renegociação da dívida - mais dinheiro, mais
tempo, menos juros, perdão -, apenas excluo o último, mesmo que parcial.
Portugal precisa de mostrar à Europa e a si próprio que é capaz de
pagar o que deve, sob pena de permanecer afastado dos mercados por uma
década.
A consequência da inexequibilidade do presente OE é o
aumento do défice e da dívida, pelo que a Europa vai ter de conceder um
novo deslizamento dos respectivos limites, algo que está a ser exigido
também por outros países.
Aliviada a pressão da dívida, importa
enfrentar o problema de fundo: o regresso à economia e à
competitividade. Investimento, financiamento, exportações e consumo
interno são as chaves para a geração de riqueza e emprego. Ironicamente,
o TC deu uma aula de economia ao Governo, porque vai permitir a entrada
de 1300 Meuro na economia, estimulando o consumo interno e gerando mais
receita de IVA.
Dito isto, resta uma questão: o novo caminho
faz-se com estes ou com novos atores? O tempo do Governo começa a
esgotar-se. Manter Gaspar e Álvaro é a renovação de uma aposta demasiado
arriscada. O cenário de eleições legislativas é ruinoso para o país,
mas Passos Coelho deve perceber que a corda não aguenta novo esticão.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
07/04/13
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