HOJE NO
"PÚBLICO"
Cientistas conseguiram tornar o cérebro transparente para melhor o perscrutar
A nova técnica, que tem o sugestivo nome de Clarity (clareza), poderá abrir caminhos absolutamente inéditos ao estudo do cérebro humano.
O cérebro é um órgão opaco. E para estudar em pormenor a sua
estrutura era, até aqui, preciso cortá-lo em finíssimas fatias de forma a
permitir a passagem da luz dos microscópios. Mas isso quebrava a
continuidade dos tecidos e limitava portanto a visão global das
interacções entre as diversas estruturas cerebrais. Agora, graças ao
trabalho de cientistas da Universidade de Stanford (EUA), descrito online na revista Nature nesta quarta-feira, poderá tornar-se possível visualizar o cérebro intacto em todo o seu esplendor.
O que torna o cérebro opaco
são principalmente as gorduras (os lípidos) que contém. Para além de
serem um ingrediente fundamental de todas as membranas celulares, os
lípidos garantem a coesão das complexas estruturas e subestruturas
neuronais, mantendo também no seu sítio os feixes de fibras nervosas que
as ligam entre si. Tirem-se os lípidos, e o órgão simplesmente
desmorona-se, explica em comunicado a Universidade de Stanford.
Ou talvez não. Karl Deisseroth e os seus colegas desenvolveram um
gel sintético transparente que impede a desintegração, na ausência dos
lípidos, do tecido cerebral. Retiraram os lípidos e os cérebros assim
tratados de ratinhos ficaram intactos – e transparentes.
Deisseroth
já era conhecido como pioneiro das técnicas de optogenética, que
permitem introduzir genes nos neurónios para conseguir “ligar” e
“desligar” essas células à vontade utilizando feixes de luz. A
optogenética é hoje utilizada com grande sucesso pelos neurocientistas
no mundo inteiro.
Quanto à nova técnica, permitiu obter imagens ao
microscópio com uma resolução sem precedente de cérebros inteiros. E
testes realizados num cérebro humano conservado no formol permitem
esperar que o método também possa servir para pôr esse nosso mais
complexo órgão “a nu”, para estudar o seu funcionamento e as suas
doenças.
Os cientistas substituíram portanto os lípidos do cérebro
por um gel inicialmente líquido. Coloca-se o cérebro de molho na
solução e passados uns tempos aquece-se ligeiramente. O gel solidifica –
e como não se liga aos lípidos, estes podem então ser evacuados
rapidamente por electroforese (técnica que permite a separação das
moléculas graças a um campo eléctrico). “O que resta”, diz o mesmo
comunicado, “é um cérebro 3D transparente com todas as suas estruturas
importantes – neurónios, axónios e dendrites [as extensões dos
neurónios], sinapses [os pontos de passagem do impulso nervoso entre
neurónios], proteínas, ácidos nucleicos [o material genético] e por aí
fora – intactos e cada um no seu lugar.”
Diz Deisseroth: “O estudo
de sistemas intactos com este nível de resolução molecular e de alcance
global – o facto de conseguir ver os pormenores finos e ter uma visão
de conjunto ao mesmo tempo – tem sido um enorme desafio para a biologia.
O Clarity permite-nos aproximarmo-nos da solução.”
Mas as vantagens não acabam aí: como o gel é poroso, a técnica (já agora, Clarity é o acrónimo de clear lipid-exchanged anatomically rigid imaging/immunostaining-compatible tissue hydrogel)
também torna o órgão “gelificado” permeável às substâncias químicas. Os
cientistas demonstraram assim, em ratinhos, que é possível introduzir
anticorpos para tornar fluorescentes estruturas cerebrais específicas. E
mais: esses anticorpos também podem ser facilmente retirados, deixando o
órgão pronto para novos testes – uma operação que pode ser repetida
múltiplas vezes.
Numa outra experiência, a equipa analisou
cérebros humanos (entre os quais o de um rapaz de sete anos que sofria
de autismo) que tinham sido conservados no formol durante anos. E,
apesar do endurecimento dos tecidos que isso acarreta, foi possível
submeter esses cérebros ao mesmo tratamento e visualizar as fibras
nervosas e os neurónios. Um vídeo da Nature resume os resultados.
“Este
feito de engenharia química promete transformar a maneira como
estudamos a anatomia do cérebro e as alterações provocadas pela doença”,
diz Tom Insel, director do NIMH (Instituto Nacional de Saúde Mental
norte-americano), num comunicado daquela agência governamental, que
financiou a investigação. “A partir de agora, o estudo em profundidade
do nosso mais importante órgão tridimensional já não será limitado por
métodos bidimensionais.”
* Clareza em caminhos já não insondáveis.
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