Não há raças, só há cidadãos?
Não é por a ciência negar a existência de raças que as crenças racistas e as instituições nelas inspiradas desapareceram.
Reconhecendo a existência de cidadãos portugueses negativamente
discriminados em função da visibilidade somática (e.g. a cor da pele, a
textura dos cabelos), os peritos do Comité para a Eliminação da
Discriminação Racial (CERD) da ONU recomenda(ra)m ao Estado português a
necessidade de reconhecer a existência de uma minoria racial e de
estabelecer políticas específicas contra aquela ilegítima discriminação.
Porém, argumenta-se que a existência de uma minoria racial
acompanhada de políticas públicas específicas para minimizar a
discriminação configura uma solução racista para o problema da
discriminação racial. Com efeito, se a ciência já provou a inexistência
de raças, invocar uma minoria racial faz subsistir na esfera pública e
na legislação política uma categoria intrinsecamente discriminatória, a
de raça, cujo impacto político devastador é testemunhado por inúmeros
factos históricos (e.g. escravatura, trabalho forçado, apartheid e Holocausto).
Neste
contexto, se não há raças e se há cidadãos (ou organizações) que
defendem a existência de uma minoria racial que carece de protecção
pública contra o tratamento discriminatório de que são alvo, então
aquela defesa prova mais o racismo de quem a propõe do que a
hetero-discriminação.
Doravante, os verdadeiros fautores da
discriminação racial são todos aqueles que denunciam um tratamento
baseado numa realidade que não existe e atribuem a falsos obstáculos
exteriores (a hetero-discriminação) a incapacidade interior de
prossecução dos seus fins. Nesta perspectiva, as barreiras raciais e
racistas no acesso à educação, aos serviços públicos e ao emprego são
exclusivamente interiores e, por serem autoignoradas, são erroneamente
atribuídas a uma entidade imaginária. Assim, a violência policial pune
comportamentos intrinsecamente desviantes e a recusa em participar na
sociedade é resultado de uma deliberada e desafiante vontade de
auto-exclusão. Em última instância, a reivindicação de uma minoria
racial resulta do processo de vitimização do grupo minoritário, incapaz
de reconhecer que a discriminação de que reputa ser alvo é uma
consequência (natural e social) da sua menoridade.
Conquanto fosse desejável que a denúncia da vitimização fosse
acompanhada pela da torcionarização, i.e. do esclarecimento da diferença
social e política na perspectiva das qualidades intrínsecas (naturais
ou sociais) do grupo de cidadãos discriminados, a ideia de que a
constituição de uma minoria racial é uma ideia racista parece-nos
precipitada.
O
argumento de que a ciência já provou não haver raças e, por isso, não
há nenhuma justificação para as mencionar parece minimizar a origem
política da discriminação racial. Com efeito, não é por a ciência negar a
existência de raças que as crenças racistas e as instituições nelas
inspiradas desapareceram. Essas crenças constituíram-se e mantiveram-se
sem legitimação científica e transformaram-se em leis públicas. Por
exemplo, a prova científica da inexistência de raças não impediu 60.000
polacos de marcharem numa Europa branca. Não evitou, também, a
integração da diferença racial nas constituições, como nos casos
extremos do apartheid na África do Sul, da segregação racial
nos EUA ou do nazismo na Alemanha, e na legislação parlamentar,
governamental e judicial noutros países.
Por isso, é conveniente
evitar confundir o preconceito racial com as leis públicas (uma coisa é o
preconceito racial dos 60.000 polacos, outra completamente diferente é a
transformação desse preconceito nas leis políticas da Polónia). É
também importante distinguir a refutação científica da existência de
raças, doravante entendida como uma ficção absurda, do tratamento
político de um grupo particular em função de leis públicas resultante
dessa ficção. Até porque essa indistinção é politicamente perigosa. Por
um lado, poderíamos inferir que se a ciência provasse existirem raças,
então legitimar-se-ia o uso do conceito e justificar-se-ia a
discriminação racial. Inversamente, deduziríamos que a condição de igual
cidadão pressupõe uma igualdade física. Por outro, poderíamos supor que
uma vez que não há raças, não há qualquer justificação para combater o
tratamento discriminatório através do uso do conceito.
Todavia, se
tivéssemos que supor uma indiferença física para justificar direitos
iguais de cidadania, teríamos dificuldade em apresentar argumentos para,
por exemplo, justificar a atribuição jurídico-política dos mesmos
direitos aos homens e às mulheres. Todavia, e salvaguardadas as
diferenças entre a discriminação de género e a de raça, a atribuição
igualitária de direitos correspondentes ao ideal da igual cidadania não
exige a anulação daquela diferença. Com efeito, mesmo, e sobretudo,
percepcionando esteticamente as diferenças naturais, estas são
enquadradas pelo legislador pela, por exemplo, ideia ético-política da
pessoa livre e igual, vista como um fim-em-si-mesma. Aquele legislador
vê as diferenças naturais e a igualdade ético-política, i.e. não precisa
de supor nenhuma indiferença natural para atribuir iguais direitos e
deveres. Neste contexto político, não faria sentido falar da necessidade
de reconhecimento de uma minoria racial em Portugal. Por exemplo,
segundo o artigo 13.º da Constituição portuguesa, os afrodescendentes
devem ser tratados de acordo com o princípio ético-político do igual
cidadão.
Todavia, do ponto de vista social e político
(legislativo, executivo e judicial), o carácter ilusório ou fictício da
raça não impede a discriminação real de um grupo de cidadãos na base da
percepção estética do seu aspecto corporal dissociada da condição de
igual cidadão. De facto, se dúvidas houvesse acerca da diferença entre o
que deveria ser e o que é, bastaria apreciar a fotografia com os
consultores da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial
(CICDR). Não ignoramos que a fotografia foi tirada em Março de 2016 e,
por circunstâncias pessoais e institucionais, a composição foi alterada.
Todavia, admitindo que a raça é uma fantasia e o Estado português é a
organização política que representa todos os cidadãos portugueses,
independentemente das diferenças arbitrárias do ponto de vista político
(e.g. religiosas, sexuais, étnicas, raciais), não deixa de ser
surpreendente a homogeneidade da visibilidade somática daqueles
consultores num organismo do Estado cuja missão é combater a
discriminação racial.
Com efeito, se o combate contra a discriminação
racial não tem raça — qualquer cidadão que se coloque na perspectiva da
pessoa livre e igual repudia a discriminação racial, como, aliás, todas
as outras discriminações (e.g. étnica, de género, de orientação sexual,
de classe) —, uma coisa é esse combate nas instituições públicas ser
travado por todos os cidadãos, independentemente da sua condição
natural, outra completamente diferente é a exclusão nesse combate dos
cidadãos que a Comissão diz ter como missão proteger. Por isso, a
homogeneidade da visibilidade somática dos consultores da CICDR,
organismo com a função de proteger os afrodescendentes da discriminação
racial, não desmente a existência de uma minoria racial, i.e., de um
grupo de pessoas impedidas de usufruir da condição de igual cidadão em
função da apreciação estética da sua visibilidade somática.
Ora,
se a evidência científica sobre a inexistência de raças proibisse
qualquer menção à raça, essa “proibição” não apenas ocultaria o hiato
existente entre a evidência científica da inexistência de raças e os
preconceitos raciais institucionalizados, mas também impediria todos os
excluídos na base desse critério de identificarem a fonte da sua
exclusão. Neste caso, a ideia de que é inaceitável falar de raça(s)
transformar-se-ia num meio perverso de intensificar tanto a sua exclusão
política, como de sonegar o direito a reivindicar ser tratado como
cidadão igual.
Professora de Ética e Filosofia Política
IN "PÚBLICO"
14/12/17
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