Agora vou-te dar
uma pica no olho
Ser médico é uma vocação, ser pai de cabeceira é uma imposição.
Se fosse possível passar ao lado desta realidade, todos os pais
passariam sem qualquer hesitação, pois ninguém quer ver um filho sofrer.
Arrepia, não arrepia? A ideia é sinistra, mas a certeza de que vai
mesmo acontecer é ainda mais apavorante. Apetece fugir e não parar de
correr até termos a certeza de que ninguém vem atrás de nós, de seringa
na mão. Falo por mim, que nunca fui exposta a tamanho pesadelo, mas acho
que também posso falar pela esmagadora maioria de seres humanos que não
lidam bem com a ideia de agulhas espetadas no corpo e, muito menos, nos
olhos.
Escrevo porque sei de um rapazinho de 4 anos que foi à urgência de um
hospital e passou por isto na semana passada. Não só estava no auge do
sofrimento físico como bastou o médico dizer a frase assassina, enquanto
mostrava o raio da seringa com a agulha ao alto, para o miúdo ficar num
cúmulo de nervos e ansiedade. Percebo-o bem. Escrevo a pensar nele, mas
também nas crianças doentes e hospitalizadas que felizmente nunca se
cruzaram nem cruzarão com médicos tão insensíveis às suas dores e
pavores. Crianças que lidam diariamente com profissionais de saúde
incapazes de anunciarem as ‘torturas’ antes de os ‘torturarem’.
Começo pelo rapaz. Já estava aflito e com dores, mas depois de o
médico lhe ter explicado crua e detalhadamente o que ia fazer, o trauma
aumentou e ele esperneou, chorou, gritou, contorceu-se e debateu-se até
mobilizar um batalhão de gente compassivamente empenhada em conter o seu
terror. Coitado, foi um castigo para o acalmarem. Eu faria o mesmo,
insisto. Aliás, eu faria pior: fugia e não deixava que ninguém me
apanhasse! Mas isso sou eu, que tenho tamanho e força mais que
suficientes para enfrentar um médico estagiário que ainda não cresceu
nem aprendeu tudo.
O rapazinho de 4 anos estava claramente em desvantagem e, por isso,
não teve outro remédio senão sujeitar-se. Mas fica a pergunta: como é
que um jovem médico não percebe que a comunicação é decisiva na atitude
terapêutica? E como é que não sabe que a predisposição para certos
tratamentos envolve sempre empatia e nunca susto? Não aprendeu na
universidade? Acho difícil que ninguém lhe tenha ensinado este básico
essencial. Se calhar foi ele que não quis ou não conseguiu aprender e é
pena, pois toda a sua vida de médico vai ser construída com base na
relação interpessoal. Seja a relação entre pares, seja com os doentes e
as suas famílias, ou seja com os outros profissionais de saúde, é
elementar ter a noção de que ser médico é muito mais que lidar com
doenças, lâminas e máquinas. É, acima de tudo, lidar com pessoas. E
saber como comunicar com elas, tendo sempre a noção de que calar pode
ser tão importante como falar.
Agora, que o rapazinho da urgência já levou a pica no olho e já
voltou para a sua vida, viro a página e passo a escrever sobre outros
médicos e outras crianças, mas estas com doenças crónicas e
internamentos prolongados. Crianças e famílias que vão e voltam muitas
vezes ao hospital, que vivem realidades muito dolorosas, mas, ao menos,
têm o descanso de saber que os seus médicos, os seus enfermeiros e os
seus assistentes operacionais nunca lhes vão dizer nem fazer
barbaridades que facilmente se confundem com grandes crueldades. Um
tratamento não pode nem deve ser uma tortura, mas quando assim é, a
obrigação dos profissionais de saúde é minimizarem o seu impacto e
fazerem tudo o que estiver ao seu alcance para ajudarem, para aliviarem
os sofrimentos, para eliminarem os danos morais e emocionais e, se
possível, até para evitarem revelar aos doentes certos detalhes de
certos tratamentos.
Ao contrário do jovem médico, que se calhar achou que fazia bem, mas
certamente percebeu que fez mal, muitos médicos novos e menos novos
assistem diariamente legiões de crianças nos pisos e unidades de
hospitais pediátricos sabendo que não lhes podem dizer toda a verdade
sem eles estarem preparados para a ouvir. Eu própria vivi essa realidade
durante os 10 anos em que fui voluntária da Acreditar, bem como nos
anos em que estive à cabeceira de doentes crónicos ou terminais de todas
as idades. Assisti a situações extraordinariamente delicadas e vi
médicos, enfermeiros, assistentes, auxiliares e estagiários de todas as
especialidades terem uma extrema delicadeza na comunicação.
No piso 7 do IPO, para dar um exemplo que conheço por dentro, vi
acontecer muita coisa que parecia impossível. Falo de autênticos
milagres, operados por médicos e doentes capazes de fazerem equipa e
lutarem juntos contra doenças terríveis. Nem sempre foi possível chegar à
cura, e muitas vezes choramos juntos por perdas absolutamente
irreparáveis. Por vidas que se perderam demasiado cedo, de crianças ou
jovens que foram verdadeiros heróis e nos deram lições de bravura. Em 10
anos aconteceu muita coisa, e guardo para sempre os exemplos de boa
comunicação, em que houve empatia e compaixão.
Todas as relações entre médicos e doentes são marcadas pela
desigualdade e esta assimetria decorre do estado de vulnerabilidade,
fragilidade e sofrimento em que se encontram as pessoas doentes. Quando
se trata de crianças, tudo é ainda mais delicado pois a sua compreensão
sobre a evolução da doença é porventura mais indecifrável. Há crianças
que choram, e há crianças que não deitam uma lágrima; há as mais
valentes e há as mais piegas; há as que fazem perguntas e as que não
querem saber absolutamente nada.; há as que se queixam e as que nunca se
queixam para protegerem os próprios pais dos seus sofrimentos. É muito
difícil estar à cabeceira de crianças e jovens.
A comunicação importa sempre. Nunca nada do que dizemos ou fazemos é
inócuo, muito pelo contrário. Em ambiente hospitalar, então, a maneira
como comunicamos e como transmitimos as boas e as más notícias fica para
sempre gravada na memória. Tudo tem efeitos secundários, no bom e no
mau sentido. Por isso mesmo é fundamental apostar numa comunicação
positiva, resgatadora, eficaz, autêntica, franca e compassiva. Dizer
demais pode ser tão fatal como calar demais, e esta casuística exige uma
calibragem afinadíssima e constante.
Nos anos de voluntariado na Acreditar vi muita coisa
acontecer: pais à cabeceira de filhos com cancros terríveis, mães a
comunicar com os seus bebés através de vidros, crianças muito pequenas
em isolamento, enfim toda a realidade própria de uma unidade oncológica
infantil que nos deixa aflitos mal pomos o pé fora do elevador, no piso
7. Em todos estes anos (e nos que se seguiram) percebi que tão
importantes como as quimioterapias e as cirurgias eram as formas
criativas e ternas como pais, familiares, amigos e profissionais de
saúde combinavam os cocktails químicos com as conversas e os silêncios. A
forma como comunicavam uns com os outros e se enchiam mutuamente de
esperança, coragem e forças foram sempre decisivas em todas as etapas da
doença.
Não resisto a recordar o Zé Maria, outro rapazinho com 4 anos, que
ficou cego de um momento para o outro, mas continuou a ver através dos
olhos de todos os que tinha à sua volta, a começar pela mãe e pelo pai,
mas também pelos olhos dos médicos e enfermeiros que cuidaram dele até
ao fim. O Zé Maria tinha cancro pela segunda vez e vivia massacrado por
tratamentos abrasivos, uns particularmente dolorosos, outros que lhe
exigiam que estivesse rigorosamente quieto durante minutos a fio, mas
tudo isto era vivido com aparente facilidade e tranquilidade porque a
comunicação entre todos era excelente. Aprendemos muito com o Zé Maria e
com muitas outras crianças igualmente adoráveis que passaram e passam
pelo mesmo que ele. Podemos ter cem anos que nunca os esqueceremos.
A maior de todas estas lições é perceber que a comunicação importa
mesmo. Não apenas o que dizemos, mas a forma como o dizemos e, sobretudo
a maneira como temos e damos esperança, como acreditamos e fazemos
acreditar em sonhos. Ser médico é uma vocação, mas ser pai de cabeceira é
uma imposição. Se fosse possível passar ao lado desta realidade, todos
os pais do mundo passariam sem qualquer hesitação, pois ninguém quer ver
um filho sofrer. Por tudo isto e porque ninguém está imune às doenças
e, mais dia menos dia, podemos ter que ficar à cabeceira uns dos outros,
vale a pena cultivar uma atitude de proximidade, usando palavras e
gestos com mil cuidados.
Vi e revivi tudo isto há pouco tempo, quando fui assistir aos ensaios
do musical “Terra dos Sonhos”, que vai estrear no Tivoli já no próximo
dia 8. Vi como somos tomados por terrores e como podemos ser resgatados
por quem nos ouve, quem conversa connosco e quem nos dá a mão nos
momentos decisivos. Por quem nos poupa a detalhes e nunca diz frases que
nos fazem fugir, muito pelo contrário, usa as palavras para nos encher
de coragem e fazer permanecer firmes, de pé, prontos para enfrentar os
medos. Vi no musical um elenco fabuloso que inclui crianças que
representam outras crianças. E foi porque vi tudo isto que também agora
escrevo. Para que o musical não passe despercebido e para que ninguém se
esqueça que a comunicação importa. Muito.
IN "OBSERVADOR"
30/05/17
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