Obrigada, ciência!
Mas nunca me teria safado
sem as minhas duas irmãs
A verdade é que, mesmo de forma tão diferente, as minhas duas irmãs não permitiram que o cancro fosse só meu
Esta semana
celebrou-se o Dia dos Irmãos e isso fez-me relembrar uma das máximas da
minha vida: nunca me teria safado neste mundo sem as minhas duas irmãs.
Precisei delas antes, durante e depois do cancro, e vou precisar sempre
que estiver aflita, sempre que estiver feliz e a querer estar mais feliz
ainda, e sempre que bater com o carro (para elas me encobrirem). Adoro
os meus pais, adoro-os mesmo, mas nunca os teria aturado sem estas duas.
Ter o cancro sem as minhas irmãs significaria não ter achado graça a
nada e é sempre melhor quando sabemos que vamos fazer falta a muita
gente – ou quando simplesmente não queremos que fiquem com as nossas
roupas. As minhas irmãs reagiram de diferentes maneiras quando souberam
que a mais nova tinha cancro. A irmã mais velha (tem mais oito anos do
que eu) decidiu agir como uma segunda mãe.
Tratou de mim com ainda mais
cuidado, auxiliou a nossa mãe em tudo, dormiu no hospital comigo, fez o
jantar à outra (que, por acaso, cozinha melhor do que ela), comprou-me
as minhas boinas, ralhou-me quando tinha de ralhar ou só quando lhe
apetecia. Já a irmã do meio tratou de manter a normalidade dos meus
dias. Garantiu que continuávamos idiotas, a brincar e a guerrear pelas
mesmas coisas e transformou o meu cancro numa festa, desvalorizando as
dificuldades e exaltando a boa vida de um doente oncológico (ela
fazia-me acreditar que tinha inveja de não dormir num quarto tão cool
como o meu, com campainha à disposição para qualquer capricho e
enfermeiros giros a desfilarem no corredor).
A verdade é que, mesmo de forma tão diferente, as minhas duas irmãs
não permitiram que o cancro fosse só meu (ou talvez sejam só umas
invejosas, porque quando uma de nós tem uma coisa, as outras também
querem) e tornaram aquela fase da minha vida na nossa fase. Decidimos,
apesar de nunca ter sido falado ou acordado porque aconteceu
naturalmente, passarmos as três juntas por isto, com risos, gritos,
lágrimas, como equipa que sempre fomos. Elas foram de tal forma
intrometidas que o dia mais feliz da minha vida, aliás, das nossas
vidas, foi vivido no aniversário da do meio. E eis a história mais
fantástica e inacreditável da minha vida.
Ela fazia uns gloriosos 18 anos de idade e nós queríamos festejar
esse marco, mas nesse mesmo dia fui fazer o exame mais importante de
sempre (mais especificamente, uma tomografia por emissão de positrões –
PET). Com este exame iríamos saber se entrava finalmente em remissão da
doença ou se ainda não estava livre do cancro.
23 de julho. Fui fazer o exame na companhia da minha mãe e o nosso
plano era despacharmos aquilo, ouvirmos a boa notícia e irmos para casa
apagar as velas e cantar os parabéns, em três tons diferentes. Fui para o
hospital com a convicção inabalável de que estava bem. Não era apenas
vontade de estar bem, eu sabia que estava bem. Sabem quando temos a
certeza de algo, mesmo que nos digam o contrário? Era esse o meu
sentimento.
Mas a médica, depois de realizar a PET, veio com aquela cara de
médica dizer-me que teriam de analisar melhor o meu exame porque me
tinham descoberto algo na bexiga. Nem a ouvi até ao fim e pirei-me dali.
Corri, corri, corri até chegar ao meu transporte, a ambulância que me
levaria para casa, e só me lembro de já lá estar dentro, com a minha
mãe, a chorar que nem uma perdida e a ralhar ao meu Deus por permitir
que me estivessem a dizer uma merda daquelas. Como poderia permitir que
me dissessem uma mentira tão grande? Como poderia ser negada a minha
certeza? Com a minha assertividade de sempre, disse à minha mãe, do alto
dos meus 14 anos, que aquilo simplesmente estava errado. Eu estava bem.
E a minha mãe concordou comigo.
Foi então que concordámos fazer algo aparentemente impossível que só pode ser sugerido por uma mãe que ama muito as três filhas:
“Quando chegarmos a casa, vamos dizer que os resultados ainda não
saíram. Não contamos nada destas novas suspeitas. Hoje há um aniversário
em casa, lembras-te? E nós vamos festejá-lo. Amanhã logo se vê.”
Limpámos as lágrimas, ignorámos o medo e cantámos os parabéns com maior
convicção ainda, porque tínhamos decidido que aquele seria um dia de
festa.
No meio do bolo, o telefone de casa tocou. E eu corri a atender
porque sabia que aquela chamada era para mim: “Marine, daqui fala a tua
médica. Saíste tão transtornada daqui que fui imediatamente rever o teu
exame com outros colegas. Desculpa ter-te assustado, afinal, aquilo que
tinhas na tua bexiga era apenas urina. Está tudo bem. Estás em remissão,
Marine, estás curad...”
Não a ouvi, novamente, até ao fim. Caí no chão a chorar. Estava bem.
Estava limpa. Estava sem cancro. A minha mãe chorava, agarrada a mim, as
outras choravam por solidariedade e por nervos, mas ainda sem
entenderem por que raio estávamos todos a chorar. Chorámos todos com
histerismos e emoção, chorámos de alívio e de tremenda gratidão, e eu só
conseguia dizer, “já acabou, já acabou, já acabou”.
Ninguém dormiu nessa noite. Brincámos, rimos, telefonámos a meio
mundo – no dia 23 de julho, celebrámos a vida duas vezes, a minha e a da
minha irmã do meio. Anos mais tarde, a nossa mais velha fez questão de
casar nesse mesmo dia. E assim, as três juntas temos um dia que é tão
nosso, só nosso, porque somos uma equipa para sempre.
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02/06/16
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