HOJE NO
"DIÁRIO ECONÓMICO"
Mário Viegas
um actor com uma AK-47 nas mãos
Nos 20 anos do seu desaparecimento, recordamos um dos aspectos mais escondidos do perfil do mais importante declamador de poesia do país: o de colunista do Diário Económico.
Matou definitivamente o pobre poeta Júlio Dantas; fez o operário em
construção dizer que ‘não’ para sempre ao seu patrão usurpador; quis
fazer de conta que queria ser um presidente a quem o sonho comandasse a
vida; transformou D. João VI, o último dos absolutistas, num personagem
anacrónico e um pouco tomado pela loucura do tempo dele; fez de Mário
Henrique Leiria o que ele é: o primeiro e um dos mais temíveis
humoristas deste país sem humor que se veja; levou a poesia ao lugar
dela: a todo o lado.
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A Invenção da Água de Mário Henrique-Leiria
António Mário Lopes Pereira Viegas morreu faz hoje 20 anos: a 1 de
Abril de 1996, num dia em que a sua morte soou como uma mentira estúpida
que se adivinhava verdadeira para sempre. Para trás (mas também para a
frente) ficava uma vida que o seu autor quis dedicar ao teatro, sempre
ao teatro mesmo quando não estava em palco – ou mais propriamente num
palco de um teatro – e à poesia toda.
Nascido em Santarém a 10 de Novembro de 1948 – no mesmo dia em que
Mikhail Kalashnikov fazia 29 anos – Mário Viegas usou todas as palavras
como se elas estivessem dentro de um carregador de uma AK-47: na sua
voz, nos seus gestos e nos esgares que as acompanhavam, usou-as de forma
que ninguém pudesse deixar de ser por elas atingido.
Auto-determinado como anarquista de esquerda, o actor – que também
havia de ser poeta, mas isso ninguém sabe – portou-se como isso mesmo
pela vida toda: esteve sempre na fronteira indistinta entre o niilismo
mais desbragado, quase inconsequente, e a defesa intransigente da
sebenta libertária, filha da praia que estava sob a calçada parisiense
em Maio de 68.
Associou-se aos grupos anti-regime antes da Revolução de 25 de Abril
de 1974 – já lá vão milhares de anos – e continuou desse lado da
barricada até ao fim (porque chegou a haver barricadas, como mais uma
vez ficou provado quando um socialista chamado António Costa quis formar
um governo sem ter ganho as eleições, corria o ano de 2016). Correu as
veredas felizes da alfabetização e o lado mais colorido do processo
revolucionário em curso, levou a sua arte aos mais recônditos e fê-los
usufruir do que de mais belo tinham os sonhos dessa altura.
Depois não desistiu: enquanto tantos outros se iam entrincheirando no
anonimato e outros ainda faziam o tirocínio muitas vezes envergonhado
de passar para o outro lado da barricada, Mário Viegas manteve-se no
mesmo sítio. A sua candidatura a deputado pela UDP em 1995, como
independente, e, no ano seguinte, a corrida à Presidência da República
adoptando o slogan ‘O sonho ao poder’, são uma mistura disso tudo:
irreverência, resistência, independência e o que mais se queira.
No meio disso tudo, teve tempo para fundar três companhias de teatro;
para dar cabo da paciência aos próprios amigos – a sua disposição para
ir aos extremos comportamentais, sexuais e pouco normais eram uma dor de
cabeça constante; para participar em mais de 15 películas
cinematográficas; e para receber o título de comendador da Ordem do
Infante D. Henrique das mãos de Mário Soares (1994).
E também para ser colunista do Diário Económico. Há que assumir que o
Diário Económico não é o jornal onde se espera encontrar uma crónica
assinada por Mário Viegas: no meio de contas sobre o défice, de
resultados anuais de empresas cotadas e de reportagens sobre eólicas,
que sentido faz encontrar a prosa de um anarquista? Faz todo o sentido!
Não só pelo ecletismo que foi sempre marca distintiva do Diário
Económico, como também pelo exactamente igual ecletismo do autor, muito
pouco disponível para se submeter a rotulagens que pudessem confranger a
sua liberdade total e absoluta. Foi para ele, Mário Viegas, muito
possivelmente um desafio a que a sua AK 47 não podia resistir. É essa
metralha que vale a pena recordar nos 20 anos da sua partida – que
nenhuma morte há-de calar.
* Temos saudades de Mário Viegas no teatro, na televisão e no cinema, a sua voz vincada ainda nos soa, agora com tristeza.
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