HOJE NO
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
Teorias de conspiração,
raiva, perplexidade e tristeza
no bairro de Abdeslam
Nos 'media',
Molenbeek é sinónimo de jihadistas e seus cúmplices, o lugar de onde
saíram centenas de combatentes do Daesh. Ao vivo, num dia cinza e frio, é
assim
Wafae não é exatamente o
tipo de rapariga que se espera encontrar num bairro que o mundo inteiro
vê como um coio de radicais islâmicos. Longos cabelos negros, pestanas
postiças, unhas rosa shocking, jeans skinny a delinear as pernas
rechonchudas, iphone plus na mão. Está à porta de um prédio com duas
amigas, Sarah e Inez. Elas têm 19 anos e estudam, Wafae, enfermeira, tem
20. E opiniões muito claras. "Para mim isto é um golpe montado pelo
Estado." Um golpe? Montado? Por que Estado? "É complicado explicar." Mas
refere-se aos atentados? "Sim. Eles fizeram isto mas tinham boas
razões. Vamos ficar à espera de saber o que se vai passar."
.
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São
cinco e meia da tarde. Estamos no centro de Molenbeek, prédios baixos,
antigos, mas sem especial mau aspecto, praticamente uma mercearia, com
muitas caixas de fruta, em cada esquina, ruas limpas, e, à exceção de
algumas mulheres de negro da cabeça aos pés e só o rosto de fora,
pessoas com aspecto normal, a maioria claramente de origem magrebina.
Não é a imagem clássica do bairro suburbano desfavorecido, até porque
Molenbeek está muito longe de ser um subúrbio: fica bastante perto, por
exemplo, da Praça da Bolsa, onde se reúnem os que querem homenagear os
mortos e feridos nos atentados, praça que, por sua vez, é ao lado do ex
libris de Bruxelas, a Grande Place. E daqui, de onde está Wafae, até à
Rue des Quatre Vents, onde Abdeslam foi preso, são cinco minutos.
"Salah não é uma pessoa violenta"
Voltemos
à conversa: "Boas razões?" Wafae olha-me com os seus enormes olhos
escuros, muito séria. "Expliquei-me mal, não era isso que queria dizer.
Eles foram endoutrinados." Hesita. "Eu conheço o Salah. Ele não é uma
pessoa violenta. Nem ele nem os outros. Não eram assim, não é possível
que tivessem ficado assim num mês. A ponto de matar gente inocente."
Sarah,
sentada na soleira da porta ao lado, assume de repente, desafiadora:
"Eu sou prima dele." Divertida com a perplexidade causada, apressa-se a
esclarecer que "não sabia onde ele estava, não podia dizer. Mas é meu
primo, defendo-o." É mesmo, prima de Abdeslam, ou está a inventar? Wafae
garante que é verdade, sem nunca perder o ar sério. Se pudesse falar
com Salah, diz, perguntava: "O que é que se passou realmente? Quem é que
te obrigou a fazer isso?" Abana a cabeça. "É que não faz sentido, por
isso digo que é um complot." Sarah volta à carga: "Sabe porque é que não
deixam a mãe dele ir visitá-lo? É mãe dele, caramba. Ela está doente
com isto, não percebe nada." A terceira rapariga, Inez, fala muito
depressa: "Vi-os prenderem-no. Bateram-lhe."
Wafae abre um link no telefone
"Tem
de ler isto. Não dá para ler aqui agora, porque é muito grande, mas
anote e leia mais tarde. Vai perceber o que estou a dizer. Porque,
repare: se eles quisessem de facto matar muita gente, acha que as coisas
se tinham passado como se passaram? Em Paris, por exemplo, estavam no
estádio e rebentaram-se cá fora. Podiam ter matado muito mais gente lá
dentro. E o irmão do Salah (Brahim, 30 anos, que se explodiu no Comptoir
Voltaire, um café do Boulevard Voltaire, a 13 de novembro), nem matou
ninguém." Sarah, de novo: "Salah não é um terrorista."
São,
garantem, as três muçulmanas. Não usam véu porque "é uma opção, não
obrigatório", e usar véu implica uma série de obrigações, que enumeram:
"Não falar com rapazes, não ir à discoteca, ir a Meca..." Sobre a imagem
do bairro, encolhem os ombros. "É normal. Há aqui muitas
nacionalidades. Italianos, portugueses." Riem com a menção a Portugal.
"Mas às vezes sinto que me discriminam quando vou procurar trabalho. E
se digo que sou daqui é pior." Um bairro normal, mas perguntam, com
apreensão: "Anda por aqui sozinha?". E a seguir: "Podíamos ir beber um
café consigo, mas o mais próximo é só para homens." E quando, no fim da
conversa, pergunto onde posso apanhar um táxi, Wafae oferece-se para me
acompanhar, para no fim explicar: "Foi para sua segurança."
Mas
recuemos um pouco, à teoria da conspiração. "Vão esperar que isto fique
calmo e o Daesh vai voltar a fazer mais atentados. É preciso deixar de
atacar outros países, assim eles deixam de nos atacar." Eles quem? Wafae
faz um ar ligeiramente enfadado. "Já reparou que eles só atacam países
com petróleo? E que se o Daesh fosse motivado pela religião, atacaria
Israel, que ocupou a terra dos palestinianos e os massacra? O Daesh é um
golpe montado pelo Estado." Mas por que Estado? "Vários. Da Europa, da
América. Esses todos. Drogam as pessoas, sei lá o que lhes fazem para
elas depois fazerem estas coisas."
"Sentimo-nos um Zoo"
Wafae
e as amigas não são as únicas pessoas encontradas ao acaso nas ruas de
Molenbeek a, no meio da conversa, revelarem que conhecem Salah Abdeslam
ou a família. E certamente não são as únicas a não querer fornecer a
identificação completa, mails, números de telefone. De facto, ninguém
diz o apelido, por vezes nem mesmo o primeiro nome. E ninguém fornece um
contacto. Mas poucos recusam falar, como fez a diretora de uma escola
básica do bairro recomendada pela sua política de integração que,
contactada pelo telefone, é cortante: "Não, temos que chegue.
Sentimo-nos um Zoo. Foi em novembro, foi na sexta-feira... Do que
precisamos agora é de tranquilidade. De trabalhar com as crianças, que
nos deixem em paz. O que se passou agora não foi aqui, foi no centro da
cidade. Não vai encontrar nenhuma história aqui na nossa escola,
connosco. Os alunos e os professores já passaram que chegue. Lamento,
mas não."
Na verdade, espantoso é que
alguém em Molenbeek ainda tenha paciência para jornalistas. Ao lado do
nº79, o prédio onde Abdeslam estava escondido, a farmácia é um corrupio
de equipas de reportagem. Por exemplo estes dois eslovacos que não
arranham nada de francês e aqui andam, desolados, a tirar fotos e sem
conseguir fazer uma única entrevista. Uma senhora de 63 anos que nem o
primeiro nome aceita dizer sai, de roupão, disparada da porta de um
prédio da rua perpendicular à Des Quatre Vents para os verberar: "Para
que estão a tirar fotos ao prédio e à rua? A pessoas que não fizeram
nada? Que mal fizemos nós? Vivo aqui há 42 anos, não temos nada a ver
com essa merda, com esses merdas. Não fazemos merda e não queremos que
façam merda. Queremos viver tranquilamente, vivemos muito bem com os
belgas, comemos com os belgas, adoramos os belgas." E não é belga? Pára,
surpreendida. "Sim, sou belga também, claro." Acalma-se. "Sabe, desde
que isto sucedeu que estamos fartos. Eu só de falar consigo já me está a
subir a tensão." Toco-lhe no braço, sorri. É de onde? "Sou de
Casablanca. Somos a primeira geração a vir para a Bélgica. E ele estava
aqui ao meu lado e eu não sabia. Ficamos doentes com isto. Se um filho
meu fizesse aquilo, nem sei. Olhe, bato na madeira. Sabe o que lhe devem
fazer, ao Abdeslam? Mandá-lo para Marrocos."
"Que raio de religião é a tua?"
Não
é a única com essa opinião. Mohamed, 30 anos, que está mesmo em frente
ao nº 79, acha o mesmo, se bem que quando se lhe aventa a hipótese de
isso poder significar a pena de morte recua na ideia. "Ah, não. Isso
também não." O que seria adequado, então? "Sei lá, um mínimo de 10, 15
anos."
Mas queria mandá-lo para Marrocos porquê? "Para ele perceber que
aqui se vive bem, temos tudo aquilo de que precisamos. A vida é muito
pior lá." Estamos a falar há um bom bocado quando Mohamed confessa que
andou com Salah na escola. "Ele é quatro anos mais novo. Mas todos
tínhamos boa opinião dele. Era um rapaz doce, simpático, que não traía
os outros. Correto." Então, como acha que isto sucedeu? "Foi
manipulado." Podia acontecer com outra pessoa qualquer? Consigo, por
exemplo? "Nem pensar. Eu fui bem educado. Sei como o mundo funciona.
Mas, repare, ele não foi capaz de se matar. O irmão explodiu-se mas ele
não." Que lhe diria, se pudesse visitá-lo? "Olhe, fico emocionado só de
pensar nisso. Aconselhar-lhe-ia coragem e paciência. Dir-lhe-ia: "Não
devias ter feito isto, fizeste algo de grave, mas tens toda a gente que
te conhece do teu lado. E espero que mudes de ideias."
Na
esquina a seguir Ilias, 18 anos que parecem 15, está na macacada com um
amigo. Desmancha-se a rir com a nacionalidade da jornalista. "Sei
palavrões na sua língua. Tenho um colega da escola, o Tiago, que me
ensinou." Bom professor, o Tiago, a crer na demostração que se segue.
Mas a risota acaba abruptamente: "É completamente bizarro, tudo isto.
Ver o nosso bairro na TV, saber que tipos pouco mais velhos que eu se
fazem explodir." Não, Ilias nunca viu Abdeslam mais gordo. Mas gostava
de lhe fazer uma pergunta: "Que raio de religião é a tua? Não há
religiões para matar pessoas inocentes."
Sobre
isso, tanto para dizer. Mas vamos à última paragem, que na verdade foi o
início da reportagem, uma loja de ferragens quase em frente ao prédio
79. Ben, 48 anos, é o dono. Tem tempo para falar, entre clientes
esparsos que o saúdam com Salaam Aleikum, a paz esteja contigo. O
bairro, diz, costumava ser "convivial". Agora é menos: "Desde que isto
começou as pessoas estão mais fechadas." Para não variar, conhece a
família Abdeslam. "O irmão mais velho costumava vir cá muito. Mas nunca
mais o vi. Que acho da família? Bom, uma coisa é certa: se olharmos para
o percurso do Salah, vemos que ele foi à escola, trabalhava, tinha um
emprego estável. Criou os seus próprios problemas. Como, porquê? Não
percebo. Era preciso ter uma bola de cristal." Nascido na Bélgica de
pais marroquinos, Ben não nega que existe discriminação contra os
magrebinos. Mas, acha, "sociedades sem discriminação não existem". E as
consequências dos atentados em termos políticos não o assustam. "Pode
ser que venham aí medidas securitárias, a extrema direita. Se for a
extrema direita democrática, não é um problema. Podem ser mais duros,
mas isso não é mau." Aliás, costuma votar à direita. "Mas não creio que
mais medidas de segurança resolvam alguma coisa. Melhores serviços de
informação, talvez." Uma senhora de idade, túnica e cabelo coberto,
interrompe, vem pedir-lhe que arranje uma vassoura. Pergunta:
"Jornalista? Vem por causa do que aconteceu, não é?" Arqueia as
sobrancelhas: "Não me pergunte o que penso, não sei o que dizer de tudo
isto."
Fernanda Câncio
Enviada especial a Bruxelas
* Vidas terríveis.
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