HOJE NO
"OBSERVADOR"
"OBSERVADOR"
“Há pelo menos 14 erros
no julgamento de Jesus”
Joseph Weiler esteve em Lisboa para uma conferência sobre o julgamento de Jesus. O académico e especialista em direito diz que a condenação era inevitável e que "moldou a nossa forma de fazer justiça"
Joseph H.H. Weiler já era um intelectual de renome e provas dadas
quando defendeu perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos o
direito da Itália a ter crucifixos nas paredes das escolas e o direito
da França a não os ter. Mas foi só depois disso que ganhou a
popularidade que hoje tem. Na altura, uns gabaram-lhe o feito, outros
encostaram-no à parede. É que Joseph Weiler é judeu, judeu convicto, e
houve quem achasse que não tinha nada que andar a meter o nariz onde não
era chamado. “Como pode o filho de um rabi defender o crucifixo?” —
perguntavam-lhe muitas vezes. E a todos eles, afáveis ou desagradáveis,
generosos ou hostis, cristãos ou judeus, religiosos ou não religiosos,
Joseph Weiler respondia o mesmo: “Não defendi o crucifixo. Defendi o
direito da Itália a ser Itália e o direito da França, onde a cruz é
proibida, a ser a França”, como contou numa entrevista.
Nascido em 1951, Weiler é autor de várias obras, entre as quais Uma Europa Cristã,
editada em Portugal pela Principia, em 2003. Nela, o autor procura
debater questões tão centrais, ainda hoje, sobre a identidade da velha e
da nova Europa, as minorias religiosas, a atitude dos europeus em
relação à política e a espiritualidade europeia. Além de reitor do
Instituto Universitário Europeu de Florença, Joseph Weiler é co-diretor
do programa LL.M. da Universidade Católica — orientado para o estudo do
Direito num contexto europeu e global — e esteve em Lisboa esta semana
para participar na conferência “O Julgamento de Jesus”, organizada pela
mesma universidade.
Antes do início da conferência, aceitou responder a algumas
perguntas do Observador, não descurando, em momento algum, o seu
cachimbo e o copo de whisky, recostado no sofá. O tempo era
curto e, por isso, decidimos compor algumas respostas com declarações do
professor durante a conferência — esses acrescentos estão assinalados
em itálico.
Uma das ideias que tem defendido — e que o
traz aqui — é que o conceito de justiça na civilização ocidental tem as
suas raízes no julgamento de Cristo. Pode explicar melhor essa ideia?
É
difícil para mim explicar isso numa entrevista como esta, tendo em
conta o tempo de que dispomos. Digamos que há, talvez, mais de três mil
livros e outros milhares de artigos em que o tema do julgamento é
abordado, mas o que é interessante é que não há um único livro, um único
filósofo, um único teólogo, que tenha colocado esta simples questão:
qual é, então, o significado do julgamento de Cristo para o conceito de
justiça no Ocidente? É surpreendente como um julgamento tão importante,
provavelmente o mais famoso na história da civilização ocidental, não
tenha sido abordado deste ponto de vista. Em toda a literatura sobre o
julgamento, há coisas que nunca aparecem.
Que coisas são essas?
Bom,
fala-se sobre os procedimentos, se ele foi ou não legal, se foi ou não
justo. Mas o que é relevante neste julgamento é a ocorrência do próprio
julgamento. Ele moldou a nossa forma de fazer justiça.
[Já durante a conferência, Weiler regressou a este tema:
Haver um julgamento é precisamente um dos nossos três grandes
princípios de justiça. Mesmo que o réu seja uma pessoa desprezível, ele
tem direito a ser ouvido e julgado em tribunal. Os prisioneiros que
estão detidos nas instalações de Guantánamo, por exemplo, por mais
desprezíveis que possamos achar que eles são, têm direito a ser
julgados. Nós sabemos que estarem detidos sem julgamento é injusto, e
isso decorre do julgamento de Jesus. O segundo grande princípio de
justiça é que não basta haver julgamento, ele tem de ser justo. Isso é
algo que está enraizado na nossa civilização. E o terceiro é que, mesmo
que o réu seja considerado culpado, ele não pode ser torturado e vítima
de outros abusos, como sabemos que Jesus foi, porque mesmo as pessoas
condenadas têm direito à dignidade. Todas essas nossas noções vêm do
julgamento de Jesus.]
.
Além desses aspetos que referiu, porque é que toda esta discussão em torno do julgamento continua a ser importante?
É importante pelo menos por duas razões. É importante para a
população em geral — para religiosos, ateus, agnósticos — porque ajuda a
perceber de que falamos quando falamos sobre justiça. Clarifica certos
valores fundamentais da civilização ocidental. E para as pessoas
religiosas, e talvez também para as outras, é importante porque quando
se pensa no julgamento de Jesus normalmente pensa-se no que aconteceu
antes do julgamento — se os judeus foram ou não responsáveis pela morte
dele, se, pelo contrário, foram os romanos, etc. Não se pensa no próprio
julgamento. Na literatura, o foco está quase sempre na relação entre
cristãos e judeus. Santo Agostinho, por exemplo, defendeu que os judeus
tinham de ser este povo pequeno, pobre e abatido para lembrar à
Humanidade o que acontece quando se rejeita Cristo e foram precisos
quase dois mil anos para o Vaticano os absolver, para deixar de
considerá-los culpados pela morte de Jesus. No fundo, o que eu acho
relevante hoje discutir não é a relação entre judeus e cristãos, mas a
relação dos judeus com Deus e a relação dos cristãos com Deus. Acreditar
em judeus e acreditar em cristãos é uma nova leitura do julgamento. É a
minha leitura. É uma leitura pluralista.
Mesmo não sendo esse o seu foco, que análise faz do julgamento do ponto de vista jurídico?
Acho
verdadeiramente que analisá-lo desse ponto de vista — se foi justo, se
não foi, se Jesus era culpado, se não era culpado, se houve violações ou
se não houve — é muito desinteressante. Lá está, a literatura existente
já se encarregou disso. Mas, analisando então do ponto de vista
material, se hoje, por exemplo, aparecesse um tipo a dizer que é filho
de Jesus, a maior parte dos cristãos diria que ele está louco, que lhe
falta um parafuso na cabeça. Que aquilo que ele está a dizer é uma
blasfémia.
O que normalmente é citado como prova de que se tratou de um
julgamento injusto são as regras e normas contidas na Mishná [o primeiro
compêndio da Lei Oral judaica, a tradição que regia os destinos da
nação judaica], que foram escritas 200 anos após o julgamento. Bento
XVI, no segundo volume da sua obra Jesus da Nazaré, intitulado Jesus da Nazaré: Semana Santa,
tem algumas coisas interessantes a dizer sobre o julgamento e sobre a
tentativa de haver um julgamento justo. Mas… a quem é que isso interessa
hoje em dia? Não a mim, certamente. E se nos meus seminários e
conferências refiro as questões legais é só porque preciso de passar por
elas para falar sobre outras coisas muito mais importantes.
Porque é que as autoridades levaram Jesus a julgamento?
Por
duas razões. Primeiro, porque Jesus disse que era filho de Deus e, no
entendimento dos judeus, isso era considerado uma blasfémia. Tal como
referi antes, se isso acontecesse hoje a pessoa em causa também seria
recriminada. E segundo porque, de acordo com o livro dos Actos dos
Apóstolos, cuja autoria é atribuída a São Lucas, embora Jesus dissesse
que não estava a tentar mudar a lei, em muitos pontos fundamentais ele
estava realmente a tentar mudá-la, e isso foi considerado uma ofensa
séria. Lucas diz que Jesus tentou exortar as pessoas a afastarem-se da
Lei de Moisés. Por isso, não acho que seja assim tão surpreendente que
ele tenha sido levado a julgamento. Ainda hoje, sempre que surge uma
religião nova, a religião existente reage a isso.
Os Evangelhos diferem nos relatos do julgamento. Até que ponto é que essas diferenças são relevantes?
Em
Lucas e Mateus, as respostas de Jesus durante o interrogatório são mais
ambíguas, mas acho que devemos guiar-nos por Marcos, que é o mais
antigo dos Evangelhos. Está mais próximo dos acontecimentos e, talvez
por isso, é o mais respeitoso para com os acontecimentos. Em Marcos,
percebemos que Jesus acreditava profundamente naquilo que ele era e na
importância daquilo que estava a fazer. Percebemos que Jesus, durante o
interrogatório, mantém-se sempre firme, altivo, disposto a dizer a
verdade conforme a entendia, mesmo sabendo quais as consequências que
iria ter de enfrentar.
Escreveu num artigo que o “problema
do julgamento não é simplesmente o facto de ter resultado na morte de
Jesus, o problema do julgamento é Jesus ter sido condenado”. Pode
explicar-nos melhor?
Nos meus seminários, há sempre um
momento mágico, um momento de reflexão e introspeção. Começamos por ler
os relatos do julgamento e logo aí desenvolve-se um sentimento muito
forte de injustiça. As pessoas começam a perguntar “mas como é que pode
ter acontecido isto a esta pessoa tão maravilhosa?”.
Eu pergunto-lhes: “O que acham então que devia ter acontecido em vez do julgamento?” E a primeira resposta que me dão, quase por instinto, é que Jesus devia ter sido exonerado. E eu pergunto novamente: “Então e depois? O que iria acontecer? Não haveria crucificação? Não haveria ressurreição? Jesus cresceria para ser um homem velho com uma longa barba?” E é aí que toda a gente pára, e começa a pensar verdadeiramente no assunto.
O martírio de Jesus é diferente de todos os outros martírios. Em
todos os outros, desejamos sinceramente que não tivesse acontecido o que
aconteceu, mas no caso de Jesus é mais complicado. Imaginemos que o
Sinédrio dizia que ele não era culpado. O que aconteceria então ao
cristianismo? Todo o cristianismo é baseado na sua inocência, na sua
crucificação e ressurreição. No contexto em que Jesus vivia — e tendo em
conta o que ele fazia e dizia — a sua morte era inevitável.
Uma
das questões a que se propõe responder nesta conferência é por que
razão as autoridades optaram pela crucifixação em vez de uma execução
sumária, que à época era a prática mais simples e comum. Pode avançar já
com uma explicação?
Essa é uma questão importante.
Porque, de facto, aquilo que nos ocorre logo perguntar é: então, se
Jesus tinha de morrer, e morrer inocente, porque teve sequer de haver um
julgamento? Porque é que ele foi torturado e crucificado? A resposta
não é fácil, mas acho que basta ver como é que os romanos resolviam
estes assuntos. Eles crucificaram milhares de pessoas e crucificaram-nas
de uma forma cruel. Era essa a resposta deles para as ofensas
consideradas graves. Desse modo, ficava bem vincado o poder de Roma. E
ao lado de Jesus estavam outras duas pessoas, não esqueçamos isso.
As suas propostas e leituras nem sempre têm sido bem recebidas. Que reações tem tido a este tema do julgamento de Jesus?
Aquilo
que digo sobre o julgamento de Jesus costuma deixar alguns cristãos e
alguns judeus muito zangados e outros cristãos e outros judeus muito
contentes. É igualmente ofensivo e não ofensivo. Os judeus ficam muito
zangados porque durante dois mil anos disseram que não eram responsáveis
pela morte de Jesus. E nos meus seminários e conferências eu digo que
eles foram, efetivamente, responsáveis pela morte de Jesus. E os
cristãos ficam muito zangados porque eu digo que era isso que Deus
queria. Eu digo que os judeus mataram Jesus porque, de acordo com a lei
que Deus lhes deu, era isso que tinha de ser feito.
[Mais tarde, na conferência, acrescentou:
Mas a minha leitura, acima de tudo, é uma leitura que integra cristãos e
judeus. Para mim, é muito claro que cristãos e judeus estavam a seguir
as instruções de Deus. Deus, na minha interpretação, podia ter
diferentes planos para uns e outros. Pode ter enviado Jesus para, no
entendimento dos cristãos, ele ser sacrificado, ao mesmo tempo que fazia
um teste aos judeus, para perceber se eles seriam ou não capazes de
cumprir a lei que Ele lhes deu.]
E aqui em Portugal? Também espera más reações?
Não. As pessoas vão ser muito simpáticas e bem-educadas.
Porquê?
Porque os portugueses são simpáticos e
bem-educados. Mas o que vão eles pensar? Isso eu não sei. Talvez pensem
que sou simplesmente estúpido.
* Uma investigação curiosa.
.
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