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IN "PÚBLICO"
24/02/16
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Eu, geringoncista
Já foi notado que alguns apoiantes das convergências à esquerda
começaram a usar "geringonça" como um termo de simpática
auto-identificação. Fazê-lo ajuda a esvaziar com humor o sentido da
palavra, quando usada original e pejorativamente pela direita. E nestas
coisas, não interessa quem gerou a palavra; interessa quem lhe tem
carinho.
Eu confesso o meu afeto pela geringonça. Desde logo, é
mais apelativo do que a expressão consagrada por anos de uso, desuso e
abuso à esquerda, a "convergência". Da próxima vez que participar numa
convergência à esquerda sou até capaz de dizer: "olha, vamos fazer uma
geringonça?".
Acima de tudo, esta geringonça demorou para chegar.
Mais de quarenta anos de espera, e os últimos quatro de desespero. Para
quem esperou e desesperou (e se mexeu para ver acontecer) é impossível
não sentir alguma comoção quando os deputados e deputadas de esquerda se
levantam ao mesmo tempo para aprovar um orçamento de estado.
Sim,
é um exercício difícil. Mas ninguém disse que ser de esquerda é
governar apenas quando for fácil. Sim, ainda há muito para discutir na
especialidade. Mas é para isso que aqueles deputados e deputadas lá
estão, e já não há como voltar atrás. A partir de agora deixou de haver
aquele momento no debate em que se perguntava: "tudo bem, o PCP e o BE
não gostam deste orçamento; mas desde quando gostaram de algum?". Mesmo
que não se trate verdadeiramente de "gostar", esta pergunta passou a ter
resposta a partir de ontem: sabemos com que tipo de orçamento a
esquerda se pode comprometer. Nos seus próprios termos, é um orçamento
que cumpre com a Constituição, começa a inverter o jugo da austeridade e
não põe em causa a presença no euro e na UE. Esse é um dado
relevantíssimo para o futuro, porque ninguém — à esquerda ou à direita —
poderá fazer de conta que não existiu.
Em boa medida, a direita
tem razão numa coisa: sim, este orçamento é definido pela oposição polar
ao que foi o governo anterior. Mal estaríamos se não o fosse. A
democracia é o regime onde a maioria manda, mas acima de tudo é o regime
onde a maioria muda. Quando a maioria não muda, ou muda e não manda
nada, a democracia não está a funcionar.
Por isso o discurso
adjetivado de Passos Coelho, centrado na ideia da usurpação e
ilegitimidade do governo, falha tanto o alvo. De cada vez que uma
maioria de esquerda vota junta, está a fazer-se a prova de que esta
maioria é o resultado legítimo de um voto democrático. E de cada vez que
Coelho se enfia na toca, enfadado, cria mais uma ocasião para a
esquerda demonstrar a coesão da sua maioria.
É isso que a direita
parece não perceber na descrição que ela própria criou da convergência à
esquerda. Não interessa se é geringonça. Interessa se funciona.
Na
verdade, geringonça é sempre que alguém tem de chegar a compromisso com
alguém para alguma coisa. A coligação PàF também era uma geringonça,
mas não suficientemente forte para que os portugueses lhe dessem uma
maioria governativa.
Por isso chamem-lhe "geringonça". De cada vez, eu ouço "democracia". O pior de todos sistemas, etc.
IN "PÚBLICO"
24/02/16
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