ESTA SEMANA NA
"VISÃO"
"VISÃO"
Refugiados sírios já estão em Portugal
A iniciativa Famílias Como as Nossas conseguiu trazer uma família de Viena de Áustria. Pai, mãe e três filhas pequenas que ganham uma nova vida em S. Martinho do Porto
Não somos moscas mas quase apostamos que por esta hora já não há
nenhum par de olhos abertos naquele quarto do Hotel D. Luís, um clássico
junto aos arcos que servem de ex-líbris à cidade. São três da manhã de
sábado Ali Abdul pode, finalmente, largar o posto de vigia e descansar.
"Wife and kids sleeping, me ok", já dissera à passagem por Itália, de
mais um café e cigarro na mão para enganar o sono.
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A mulher, Nada, e as filhas, Dima, Inas e Rimas, devem estar a dormir
profundamente e ele descansado. Acabaram de fazer 2 700 quilómetros
entre Viena de Áustria e Elvas, um dia e meio enfiados num monovolume
sempre com o velocímetro a tocar nos máximos permitidos, com direito a
conhecer as casas de banho das áreas de repouso das auto-estradas e
pouco mais. Nuno Félix e Vera Valério Batista iam revezando-se ao
volante com um objetivo: levar o mais depressa possível a família de Ali
para Portugal, sem dar nas vistas.
A responsabilidade era grande. Na tarde de quarta-feira, 30, quando
os elementos da iniciativa Famílias Como as Nossas conheceram Ali, a
mulher e as suas três filhas, na estação central de Viena, já os quatro
haviam percorrido quase toda a rota habitual dos refugiados sírios. Só
lhes faltava chegar à Alemanha.
Tinham saído da Síria numa noite escura rumo à fronteira com a
Turquia. Ali levou uma das filhas às cavalitas e Nada empurrou um
carrinho de bebé. Foram cinco horas de caminhada através das montanhas,
integrados num pequeno grupo que se juntou a mais 200 pessoas
interessadas, como eles, em fazer a travessia até à Grécia. Dima tem 9
anos, Inas 7 e Rimas 5, mas são pequeninas para a idade.
A travessia do Mar Egeu demorou duas horas e
meia. Mal pisou o solo grego, ainda de colete salva-vidas, Ali posou com
alguns companheiros de viagem para uma fotografia que faz questão de
mostrar no seu telemóvel. Da Grécia, ele e a família voltaram a pôr pés
ao caminho, passando pela Macedónia, Sérvia, Croácia e Hungria. Têm sido
milhares como eles, mais ou menos em passo de corrida, ao ritmo do "Go!
Go!" dos guardas fronteiriços.
Estavam há apenas quatro horas na estação central de Viena quando
Nuno Félix os convidou a trocarem o destino final. "Nós queríamos
comprar os bilhetes de comboio para a Alemanha, mas as pessoas falavam
de Hamburgo, de Dachau, Berlim, Munique... E eu não sabia o que fazer",
explica Ali.
Tudo isto ele foi contando nos intervalos da viagem até Portugal,
sempre no mesmo inglês com poucas preposições e tempos verbais, e sem
mudar o tom de voz. Os cabelos grisalhos envelhecem-no muito para lá dos
seus 37 anos; só mexe os músculos da cara para sorrir.
Mais nova dez anos, Nada é uma mulher pragmática e eficiente. Enfiou
fraldas descartáveis às três filhas não fossem elas atrasar a viagem com
demasiadas idas à casa de banho, e, quando a polícia reteve os carros à
saída da Áustria, manteve-as sossegadas a pintar livros de colorir.
Enquanto Ali perguntava a Vera: "No more Portugal?", tentando perceber
se o desfecho seria terem de voltar para Viena e pedir asilo na Áustria,
elas nem piavam.
Tudo começou porque o carro não trazia a vinheta necessária
para atravessar a Áustria e aceder às auto-estradas, uma infração
multada em 140 euros. Depois, os funcionários do controlo da alfândega
olharam com atenção para os passageiros, pediram os documentos de todos e
acabaram a chamar a polícia.
Aos agentes, Nuno Félix assumiu o que estava a tentar fazer: levar
uma família de refugiados sírios para Portugal. Então não havia margem
para dúvidas, disseram: Ali, Nada e as miúdas não podiam seguir viagem,
tinham de pedir asilo na Áustria, e Nuno ficava, desde aquele momento,
proibido de utilizar o telemóvel.
No outro lado da estrada, choveram os telefonemas depois de o
backoffice da caravana ter sido ativado em Portugal. Sem efeito. "Aqui,
as autoridades portuguesas não mandam nada", iam dizendo os polícias. "E
o que vocês estão a fazer é imoral."
Bastou essa frase para Teresa Conceição, jornalista da SIC, encetar
uma troca de argumentos com um deles. Imoral, disse-lhes, é haver uma
guerra na Síria há quatro anos, é não ajudarmos as pessoas que estão a
fugir à guerra, e condenar quem tenta dar-lhes a mão. A conversa demorou
muito mais tempo do que leva a contar, é claro, mas para a história
fica que o polícia hesitou uns segundos até voltar atrás na palavra - os
refugiados podiam seguir caminho desde que pagassem uma multa de 200
euros por andarem a circular sem documentos.
Foi o alívio geral. E, na manhã seguinte, já em França, Ali e Nada
começaram a tirar fotografias às crianças, em quase todas as áreas de
serviço. Como se estivessem a fazer um novo álbum de família.
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