07/09/2015

RUI TAVARES

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Defeitos com qualidades

Sem ideia do que iria encontrar, os contos de Oliver Sacks sobre os seus pacientes neurológicos foram uma descoberta.

Não me lembro de que idade tinha. Sei que era o último dia da Feira do Livro de Lisboa e que já tinha esgotado o meu dinheiro. Em geral só podia pagar livros dos fundos de edição que os editores punham nos escaparates laterais das suas bancas. Mas havia um livro novo em destaque na banca da Relógio d’Água, com o título O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu e um autor que eu desconhecia: Oliver Sacks.

Passei e voltei a passar diante da banca até desistir da compra. Regressei a casa convencido, mas não vencido. Quando já era de noite, não resisti a persuadir os meus pais a darem-me uma ajuda de última hora. Uma viagem de autocarro depois, e o meu primeiro livro de Oliver Sacks — autor que morreu este passado domingo — foi adquirido quando as bancas da feira já estavam a fechar.

 Não me lembro de nenhum outro livro dessa temporada, mas — e por isso conto esta história — de O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu nunca me esqueci. Sem ideia do que iria encontrar, os contos de Oliver Sacks sobre os seus pacientes neurológicos foram uma descoberta. O que era aquilo? Literatura, medicina, reportagem, ficção, não-ficção, ensaio? A escrita de Oliver Sacks era um género à parte (mas que reinventava uma tradição esquecida, a do “conto médico” cultivado pelo neurologista soviético A.R. Luria).

O que para alguns pode ser apenas uma questão de forma é aqui também uma questão de conteúdo. A escrita de Oliver Sacks está na encruzilhada entre a ciência e as humanidades. A medicina está nessa mesma encruzilhada, e reconhecê-lo enriquece o nosso olhar. Uma das coisas que surpreendia em Sacks, por exemplo, era a conclusão de que muitas vezes os pacientes vivem melhor se encontrarem um ponto de entendimento com a sua doença. Havia o homem que tinha tiques e dizia palavrões em momentos inconvenientes (sofria de Síndroma de Tourette): medicá-lo permitia eliminar os sintomas, mas também lhe diminuía a criatividade quando tocava bateria (era, se não me engano, músico de jazz) ou o impedia de se divertir quando jogava ping-pong. Se fosse mais obcecado pela doença do que pelo paciente, Sacks não teria sequer identificado esse dilema, e não teria podido ajudar o paciente a ajudar-se.

Outros livros de Oliver Sacks, como Um Antropólogo em Marte ou A Ilha sem Cor, expandiam a sua visão do universo hospitalar e do enfoque individual para a cultura e a sociedade. O segundo destes livros é uma extensa descrição de uma ilha onde grande parte da população vê as coisas a preto-e-branco, por causa de uma doença chamada «acromatopsia» que ao mesmo tempo retira as cores mas acrescenta uma sensibilidade às texturas e às sombras.

Pelo meio, Oliver Sacks tornou-se um autor ainda mais famoso, com filmes baseados nos seus livros representados por estrelas de Hollywood. Não li os seus últimos livros, mas encontrei recentemente um seu artigo sobre as pessoas que (como eu) têm dificuldade em lembrar-se de rostos (a “prosopagnosia”), e onde de novo sobressaía a grande qualidade de Oliver Sacks: a sua capacidade de encontrar enriquecimento nas nossas imperfeições, e encher de humanidade o humano. Que muitos leitores o descubram.

Historiador, drigente do Livre

IN "PÚBLICO"
02/09/15

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