HOJE NO
"OBSERVADOR"
"OBSERVADOR"
225 anos depois,
o Atelier Gessos Maceiro
vai fechar portas
Eram 9h00 quando João Paulo Mourato abriu as portas do Atelier Gessos
Maceiro pela última vez. Sentado num escritório apertado, admite que é
“uma frustração”. Mostra os livros que, durante mais de 200 anos,
ocuparam as prateleiras do atelier, um dos mais antigos dedicados à criação, preservação e restauro de peças em gesso em Portugal.
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“Isto
é só pó”, diz apontando para o papel escuro. “Veio cá uma senhora do
Museu de Arte Antiga, especialista em restauro de papel, e disse que os
livros estão em boas condições. Como não os sei restaurar, prefiro não
lhes mexer. Tenho medo de os estragar.”
Os livros, escritos em latim e ilustrados com fachadas,
colunas e capiteis de antigos prédios alemães, são apenas algumas das
peças que compõem o enorme espólio da empresa, criada em 1790 pela
família Maceiro. Em cima de mesas e prateleiras, amontoam-se moldes de
silicone, florões para tetos, rosetas, painéis e frisos. Tudo o que por
ali se fez durante as últimas décadas — mas não só. Há moldes antigos,
do século XVIII e XIX, e desenhos feitos a tinta-da-china e carvão.
Aqui
e ali, encostadas às paredes, erguem-se colunas altas. Há capitéis,
pilastras e até um busto em barro do General Ramalho Eanes. Tudo isso — e
o que mais se encontre pela loja da Rua Luciano Cordeiro, em Lisboa —
será vendido por João Paulo Mourato. A quem? A quem quiser comprar, pois
claro. “Não dou nada a ninguém! Isto é um país a brincar, não é de gente séria. É gente saloia e mesquinha.”
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Sem ter quem desse continuidade ao negócio, durante oito anos, João Paulo Mourato trocou emails com instituições, ministros e chefes de gabinete, na esperança de que alguém quisesse adquirir o “espólio produtivo, documental, histórico e museológico” que foi acumulado durante 225 anos pela família Maceiros e seus descendentes. De todos, recebeu a mesma resposta: “Não há dinheiro”.
“Entre 2014 e 2015, pelo menos umas 40 pessoas visitaram o atelier”, confessa. Sentada à sua frente, a mulher, Maria José Sousa, sorri. Pintora de profissão, tomou as rédeas do atelier em 1993, altura em que a tia, então dona da Gessos Maceiro, lhe passou a empresa. “Quando o marido morreu, a tia dela ficou com a empresa. Então meteu cá um encarregado, que era filho da sobrinha. Mas ele foi-se
embora de repente, e desapareceram várias coisas daqui. Deixou a senhora em mais lençóis.”
Maria José Sousa, que tinha estudado na Faculdade de Belas-Artes, era então professora. Como não gostava muito da profissão, aproveitou a oportunidade que lhe foi apresentada pela tia. Está à frente da Gessos Maceiro desde então, sempre com o apoio do marido. Este, engenheiro, confessa que o seu papel ali sempre foi o de organizador. “Quando vim para aqui, 30% do tempo era passado à procura dos moldes. Ninguém sabia onde estava nada!”
Para facilitar o trabalho dos artesãos, João Paulo Mourato dedicou-se a catalogar as mais de 200 peças que constituem o espólio da empresa. “Também a informatizei. Criei uma página na internet em quatro línguas. Fui eu que fiz tudo, só comprei o esqueleto.” Até porque, “se eles conseguem criar um site, eu também consigo!”
Na altura, a loja funcionava na Avenida da Liberdade, no número 203. Aí, João Paulo e Maria José chegaram a empregar sete trabalhadores, entre os quais alguns prestadores de serviços que recebiam 20 contos por dia. “Tínhamos uma senhora que atendia ao público que recebia 80 contos, mais comissões. Por mês, chegava a tirar 160 contos. Dividíamos o bolo. Fazíamos isso para que todos se sentissem interessados no trabalho.”
“Não” atrás de “não”
Em 1996, surgiu a oportunidade de a Gessos Maceiro fazer uma (primeira) exposição, em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa. Depois de uma primeira reunião, ficou acordado que o Museu da Cidade ficaria encarregue de servir de elo de ligação entre a câmara e a empresa. Apesar do entusiasmo inicial, a câmara depressa caiu em silêncio.
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Depois de alguns dias sem notícias, João Paulo Mourato lá conseguiu entrar em contacto com a então diretora do Museu de Lisboa, que lhe perguntou sem rodeios “quanto” é que queria. “Disse-me que não havia dinheiro e que talvez só desse para fazer a exposição ‘daqui a dois anos'”. Para o sócio-gerente da Gessos Maceiro, este foi “o primeiro embate”.
Em 2006, Maria José Sousa adoeceu. O esforço de vários anos de trabalho fez com que desenvolvesse uma hérnia discal. “O atelier começou a ter um ritmo diferente, ficou semi-paralisado”, admite João Paulo Mourato. Foi nessa altura que contactou pela primeira vez a Fundação Ricardo Espírito Santo e lhe propôs que adquirisse o espólio. Apesar do interesse demonstrado, foi-lhe dito que a Fundação não tinha dinheiro.
O atelier ficou então “no limbo”. Os trabalhadores foram, a pouco e
pouco, sendo dispensados, até que a empresa ficou apenas nas mãos de
João Paulo e Maria José. Mas a doença da pintora, cada vez pior, fez com
que a Gessos Maceiro permanecesse a meio gás. “Íamos abrindo, uma ou
duas vezes por semana”, conta o marido.
Tentar arranjar soluções
para os problemas parece ser a especialidade de João Paulo. Diz que
aprendeu isso na faculdade. E foi exatamente isso que fez quando
percebeu que não havia forma de continuar com a Gessos Macedo. Como não
foi possível encontrar na família quem quisesse seguir o negócio, o
sócio-gerente virou-se para as instituições locais.
Durante os
oito anos que se seguiram, entre 2006 e 2015, retomou por diversas vezes
o contacto com a Fundação Ricardo Espírito Santo que, apesar do
interesse que sempre demonstrou, se recusou a acolher o espólio. Falou
com a Santa Casa da Misericórdia, com o Ministério da Cultura e com a
Câmara Municipal. Algumas das pessoas com quem falou até eram clientes
da empresa. Mas, de todos, ouviu sempre que não havia dinheiro, mas que o espólio centenário “era muito interessante” e importante para a cultura.
“Todos
quantos contactamos dizem e escrevem sobre a grande importância para a
cultura nacional que tem o Atelier Gessos Maceiro, mas na verdade são os
projetos apadrinhados politicamente e economicamente — como por exemplo
foi a criação do Museu Berardo, o Museu dos Coches, para citar alguns —
que recebem os apoios e o dinheiro dos contribuintes”, diz. Sobre o
Museu Berardo chegaram até a dizer-lhe que, se não fosse por ele, não havia um Picasso em Portugal.
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* Mais uma nódoa sebenta nos responsáveis da cultura em Portugal.
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