Dignidade, por favor
1. Têm sido os
políticos os maiores agentes da sua própria descredibilização. Não por
haver menos gente honesta, competente ou preparada na política do que em
qualquer outra atividade, mas porque os políticos portugueses não
perdem uma oportunidade
para dar provas de uma enorme falta de respeito por quem os escolhe e,
sobretudo, por eles próprios. E é exatamente na Assembleia da República,
lugar onde estão os representantes do povo, que temos assistido a uma
espécie de campanha involuntária no sentido de perdermos qualquer tipo
de consideração por aqueles homens e mulheres. Têm sido, de facto,
deputados os mais recentes militantes na conhecida campanha contra os
políticos e a política, que é basicamente uma campanha contra a
democracia.
Nesta semana tivemos mais dois flagrantes exemplos.
O
primeiro, que já se vem arrastando, é o que diz respeito à lei do
enriquecimento ilícito, agora eufemisticamente rebatizada - depois de
ter sido chumbada no Tribunal Constitucional - de lei do enriquecimento
injustificado.
Sei, infelizmente, que o PSD e o CDS, ou melhor, o
partido "chega-me isso", antigamente conhecido como CDS, estão tomados
por uma espécie de revolucionários que parecem ter como objetivo a
destruição dos valores fundamentais dos seus partidos. Muito pior,
nutrem, por ignorância, um desprezo brutal por traves-mestras do Estado
de direito. Estaria, porém, a insultar a inteligência e os conhecimentos
elementares da maioria - espero, esmagadora - dos deputados dos
partidos que aprovaram aquela iniquidade se tivesse o atrevimento de
lhes explicar os fundamentos da democracia liberal e do Estado de
direito. Mal estávamos se aqueles deputados todos não soubessem que a
não inversão do ónus da prova é uma garantia básica numa democracia.
Aliás, esse direito deveria ser especialmente protegido por alguém de
centro- -direita, como, imagino, se ainda consideram os deputados do CDS
e PSD. É essa área política que tradicionalmente se preocupa mais com
os direitos dos indivíduos face ao Estado, é essa zona ideológica que se
define em larga parte como um bastião da preservação das garantias do
cidadão face ao sempre latente arbítrio do Estado.
E, no entanto, aprovaram aquele ataque feroz à democracia liberal. Desrespeitaram o mais primordial mandato: a defesa do
regime. E fizeram-no com a consciência de que o estavam a fazer.
Transformaram-se em zombies da democracia. Sei bem que a disciplina de
voto, em inúmeras situações, é fundamental. Que tem de haver uma escala
de valores imposta, sob o risco de não se poderem cumprir nem promessas
eleitorais nem programas de governo. Mas por que diabo o aborto ou o
casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma questão de consciência e se
tem de aprovar cegamente um ataque ao Estado de direito? E que acham os
deputados mais importante: a defesa da democracia liberal ou as
instruções do partido?
Como uma desgraça nunca vem só, assistimos
incrédulos às primeiras declarações dos deputados da maioria sobre a
recondução de Carlos Costa. Está em curso uma exibição de falta de
vergonha que manchará para sempre os deputados que a exibirem, o
instituto comissões de inquérito e a própria Assembleia da República.
Que
Passos Coelho ignore olimpicamente os resultados da comissão de
inquérito ao caso BES é lá com ele - apesar de ficar clara a
consideração que tem pelos deputados do seu próprio partido... os do
outro, já sabemos, não contam. Que Carlos Costa se sinta confortável com
continuar no cargo quando os representantes do povo, de forma clara e
evidente, não o consideram capaz de o exercer de forma competente também
é lá com ele - digamos que diz muito sobre o seu apego ao cargo. Mas a
possibilidade dos deputados que assinaram o relatório da comissão de
inquérito, nomeadamente, claro está, na parte que diz respeito à
apreciação do papel desempenhado pelo governador, venham agora concordar
com a sua recondução é de uma indignidade sem nome, de uma falta de
respeito por eles próprios e pela instituição que servem que chega a
causar vergonha alheia.
Tenho sempre muito cuidado em abordar
questões morais em política, mas se há casos em que ela está presente de
maneira transparente é nesta. Que moral pode um indivíduo invocar
quando trai a sua própria palavra? Que consideração podemos ter por quem
troca a sua opinião explícita e inequívoca por, quem sabe, a
continuação no cargo de deputado? Como é que alguém pode pedir o nosso
voto se ficamos a saber que pode, em situações tão importantes como
esta, esquecer as suas convicções e transformar-se num fantoche?
Temos de exigir honra e dignidade a alguns dos nossos representantes. Mal estamos quando temos de o fazer.
2.
Durante esta semana, o Presidente da República não veio fazer nenhum
apelo ao consenso. Pelos vistos, não achou que a nomeação do governador
do Banco de Portugal fosse suficientemente importante para que houvesse,
pelo menos, uma conversa entre o primeiro-ministro e o líder da
oposição. Estamos conversados, senhor Presidente.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
31/05/15
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