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"OBSERVADOR"
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Portugal terá um “terceiro género”
no bilhete de identidade?
Intitulado “Human Rights and Intersex People”, o relatório do Conselho da Europa, a que o Observador teve acesso, diz explicitamente que os estados-membros devem “facilitar o reconhecimento dos indivíduos intersexuais perante a lei através da emissão expedita do assento de nascimento, documentos de registo civil e cartões de identidade ou passaportes”
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Santiago d’Almeida Ferreira tem 25 anos, vive em Lisboa e
descreve-se como homem negro e intersexual (ele prefere dizer
“intersexo”). “Uma pessoa intersexo não entra na norma do masculino e do
feminino, não está dentro do que é expectável anatomicamente e isso
pode revelar-se à nascença, na puberdade ou até na idade adulta”,
explica. “São pessoas não totalmente femininas ou masculinas, o espectro
é grande, pode implicar características da massa muscular, os gónadas
ou os cromossomas.”
Ao lado de Júlia Mendes Pereira, dirigente do
Bloco de Esquerda e antiga responsável pelo grupo de trabalho
transgénero da associação ILGA, Santiago d’Almeida Ferreira dirige desde
o início deste ano a API – Ação pela Identidade, descrita como a única organização não-governamental trans e intersexo existente em Portugal.
“Os médicos tentam normalizar a condição intersexo e às vezes é
apenas desconhecimento”, afirma Santiago. “No meu caso, os médicos do
Serviço Nacional de Saúde não foram transparentes e tentaram esconder
factos”, resume, sem entrar em pormenores. “Eles não explicam aos pais
ou às pessoas adultas o que estão a fazer e impõem cirurgias, fármacos
ou tratamentos hormonais.”
Nem todas as pessoas intersexuais
querem ou precisam daqueles tratamentos, mas de acordo com o dirigente
associativo “há muitas que são operadas à nascença e só mais tarde
descobrem, porque os pais nunca lhes contaram ou porque os médicos não
contaram aos pais”. “É dito à maioria dos pais que a criança tem de ser
tratada porque pode vir a ter problemas cancerígenos, mas as
características intersexo não precisam de de ser corrigidas e se forem
tem de haver informação clara e respeito pela autodeterminação de cada
pessoa”, conclui Santiago.
É a pensar nestas situações que o comissário dos Direitos Humanos do Conselho da Europa, Nils Muižnieks,
vai publicar esta terça-feira um relatório que recomenda aos 47
estados-membros duas ações concretas. Por um lado, “o fim dos
tratamentos médicos desnecessários que sejam impostos ou administrados
sem o consentimento livre e informado dos visados”. Por outro, “a
proteção contra a discriminação, o reconhecimento adequado nos
documentos oficiais e o acesso à justiça”.
Isto significa, na
prática, que os países europeus são chamados a criar uma terceira opção
de género nos assentos de nascimento e nos documentos de identificação. É
uma hipótese também estudada pelo Bloco de Esquerda (BE), que se
prepara para apresentar na Assembleia da República um projeto de lei
para “reconhecimento da realidade intersexo e a defesa da
autodeterminação”, de acordo com o deputado José Soeiro. O projeto vai
dar entrada “provavelmente no início de junho”, adianta.
Intitulado
“Human Rights and Intersex People”, o relatório do Conselho da Europa, a
que o Observador teve acesso, diz explicitamente que os estados-membros
devem “facilitar o reconhecimento dos indivíduos intersexuais perante a
lei através da emissão expedita do assento de nascimento, documentos de
registo civil e cartões de identidade ou passaportes”.
Nils Muižnieks pede “procedimentos flexíveis” na alteração de sexo e
género a nível oficial e a “possibilidade de não se escolher um marcador
específico de género masculino ou feminino”.
A proposta coincide
com a posição da API e de Santiago d’Almeida Ferreira, embora este ainda
não tenha a certeza sobre qual o nome a dar a essa terceira opção de
registo. “Terá de haver discussão e aprofundamento”, comenta. A Alemanha foi pioneira na Europa e desde novembro de 2013 permite que os bebés intersexuais sejam registados como tendo “sexo indefinido”.
A
intersexualidade não está está relacionada como a orientação sexual, já
que estas pessoas podem ser hetero, homo ou bissexuais. Também não se
relaciona diretamente com a identidade de género (transexualidade), pois
esta implica, regra geral, pessoas que querem mudar de sexo por
sentirem que o corpo não corresponde ao que sentem psicologicamente. Em
inglês, utiliza-se a palavra “intersex”.
Há quem traduza por intersexo
(não existe nos dicionários) ou intersexual (está dicionarizada, assim
como intersexuado).
Até há poucas décadas, falava-se em pessoas
hermafroditas, termo que alguns intersexuais rejeitam, considerando-o
ofensivo, e que outros reclamam, aceitando-o. A medicina fala em “distúrbios do desenvolvimento sexual”, conceito onde cabem a intersexualidade e condições idênticas.
Santiago
d’Almeida Ferreira não aceita a classificação médica por esta implicar
um visão patológica da intersexualidade. Propõe um termo-chapéu mais
abrangente: pessoas não-binárias, ou seja, que estão fora das categorias
de sexo macho ou fêmea, das categorias sociais homem ou mulher e do
quadro psíquico masculino ou feminino. Note-se que, muitas vezes, a
temática intersexual é incluída no conceito transgénero (transexuais,
travestis, etc.), o que também não é consensual.
A fluidez na
matéria parece dever-se principalmente à invisibilidade social das
pesssoas intersexuais. Só a partir dos anos 1990, diz o comissário Nils
Muižnieks, é que o ativismo dos direitos humanos, as associações de
apoio a doentes e o próprio movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e
transgénero) começaram a prestar atenção ao tema. Calcula-se que uma em
cada 1500 pessoas possa ser intersexual, mas a informação não é
rigorosa. O relatório cita a geneticista norte-americana Anne
Fausto-Sterling, segundo a qual cerca de 1,7% dos recém-nascidos são
intersexuais.
Quanto ao projeto do BE, não se limita à questão
intersexual. Corrige também vários aspetos da chamada Lei da Identidade
de Género, de 2011, que já hoje permite a mudança de nome e sexo no
registo civil sem necessidade de cirurgias genitais. Numa audição
parlamentar promovida na semana passada pelo grupo parlamentar do BE,
com a presença de várias pessoas intersexuais e transexuais, foram dadas
como exemplo a seguir as leis de Malta, de abril último, e da
Dinamarca, de junho do ano passado.
“Acredito que a proposta do
Bloco vá levantar polémica, porque há sempre quem diga que o país tem
problemas mais urgentes relacionados com a crise económica”, comenta
Santiago d’Almeida Ferreira. “Mas as pessoas intersexo são cidadãos e
cidadãs que pagam impostos e cumprem deveres, por isso têm o direito de
ser reconhecidas pela lei.”
* Nada mais justo do que terem direito ao reconhecimento absoluto.
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