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Anatomia de uma falha
O trunfo de Passos talvez seja o de ser um homem como nós. Mas falta-lhe um momento de redenção...
Num livro fantástico, o escritor Javier Cercas traça um retrato
histórico do período de transição para a democracia, em Espanha.
Anatomia de um Instante parte do momento em que o tenente-coronel
franquista António Tejero entra pelo Congresso dos Deputados, aos tiros,
no auge de uma tentativa de golpe e três homens recusam obedecer à
ordem de se atirarem para o chão. De caminho, Cercas revela que em lugar
de escrever o romance histórico inicialmente previsto, optou, a meio
caminho, por investigar os acontecimentos e produzir uma novela não
ficcional. "Porque a realidade era muito melhor do que a ficção." No seu
fresco sobre a História de Espanha desde a guerra civil, o escritor
labora em torno de personagens fundamentais, num magistral registo de
?emotividade não comprometida, mostrando-?-nos uma galeria de
anti-heróis em que não esconde fraquezas, defeitos, imperfeições. Entre
eles, o Rei, Juan Carlos, e o presidente do Governo de transição, Adolfo
Suárez.
Este, bem como o secretário-geral do PCE, Santiago Carrillo, e o
oficial do Exército Manuel Gutiérrez Mellado, vice de Suárez e seu
ministro da Defesa, foram os únicos que desafiaram o pronunciamento de
Tejero, nesse distante 23 de fevereiro de 1981 (o 23-F...),
mantendo-?-se de pé, quando todos os deputados e membros do Governo, ao
primeiro tiro, se precipitaram para debaixo das respetivas bancadas.
Desse instante mágico nasce uma lenda - e nasce a obra de Javier Cercas,
cuja simpatia pessoal e política por Adolfo Suárez se revela, ao longo
do livro, absolutamente ausente. Suárez é-nos apresentado como um
arrivista, com sentido de oportunidade, que tratava, em primeiro lugar,
da sua vidinha. Mas a conclusão do livro deixa-nos estarrecidos:
incondicionais apoiantes do antigo primeiro-ministro, os pais do autor
dão-lhe a chave da importância de Suárez, da sua popularidade
prolongada, do seu papel fundamental e da sua transcendência no instante
cuja anatomia dá origem ao livro. "Javier, mas não compreendes? Ele era
como nós!" Como nós! Um espanhol comum, que num dado momento se torna
tão decisivo como o próprio povo. Um plebeu cheio de defeitos, que se
destaca numa monarquia onde a nobreza é avaliada pela cor do sangue.
Oiçamos,
40 anos depois, Pedro Passos Coelho: "Não sou um cidadão perfeito!" Com
esta frase desarmante, o primeiro-ministro português justifica a sua
falha no pagamento da Segurança Social. Como "nós", arrastou o seu
curso, trabalhou o menos possível, fez noitadas de álcool e mulheres,
pediu um subsídio que talvez não lhe fosse devido, apresentou faturas de
representação para ganhar dinheiro livre de impostos; como nós talvez
sofra de iliteracia no momento de preencher impressos das Finanças e nem
sequer terá sido, como nós, o melhor dos maridos, pelo menos, no seu
primeiro casamento.
Como nós, vive nos subúrbios e passa férias numa
praia popular, rodeado de povo, à sombra de chapéus de sol. A sua força
política pode vir daí. De ser um homem como nós. Cheio de defeitos, de
imperfeições e de passado.
Mas falta-lhe a magia de Adolfo Suárez. O instante da redenção, o
clique que o torne imprescindível. Podia ter sido agora. Se tivesse
assumido a falha numa única declaração desassombrada, e se tivesse
resistido à tentação de apontar o dedo a alguém que, na mó de baixo de
um cárcere, é tido como pior do que ele. Foi pena.
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