31/03/2015

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HOJE NO  
"RECORD"
Dentro do género

A questão da transexualidade no mundo do desporto ainda se fala de forma tímida mas Bruce Jenner colocou o tema na agenda

Aos 26 anos, Bruce Jenner chegava aos Jogos Olímpicos de Montreal’1976 como recordista mundial do decatlo, mas como um desconhecido. Bateu consecutivamente marcas pessoais e, no final, medalha de ouro e novo recorde do Mundo. No imaginário ficou a volta de consagração de Jenner, cheio de forças, enquanto os adversários tombavam exaustos. Não é de admirar: era o atleta mais completo do Planeta.

Aquela haveria de ser a última prova de Bruce Jenner. "Deixei as varas no estádio. Estava farto", revelou. Numa altura em que o desporto olímpico era amador, Jenner optou por capitalizar a fama. 
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Bruce Jenner

Fez publicidade, filmes, foi piloto de automóveis. Transformou-se numa figura mediática, ainda que o "boom" só surgisse em 2007, quando se tornou num dos integrantes do reality show "Keeping up with the Kardashians". O programa, focado essencialmente na família da terceira mulher de Bruce, Kris Kardashian, é um sucesso de audiências desde então.

Jenner passou a viver na sombra da agora ex-mulher, mas voltou a ser protagonista no início deste ano, quando a família reconheceu que o campeão olímpico havia iniciado um processo de transição de género. Aos 65 anos, aquele que um dia foi o homem mais completo do Mundo, vai tornar-se numa mulher. Jenner já havia feito operações plásticas, mas o processo de transição só começou a ser mais visível no último ano: surgiu com o cabelo longo, com maquilhagem e brincos. Em dezembro confirmou que iria retirar a maçã-de-adão. De acordo com a imprensa norte-americana, Jenner assumirá a mudança de identidade no verão.

Uma realidade

O caso de Bruce Jenner é só um entre vários no desporto. Contudo, o seu peso mediático ajudou a colocar o tema na agenda. Num mundo de regras bem definidas como é o do desporto, a questão da transexualidade, não sendo tabu, fala-se de forma tímida. O medo da discriminação é uma realidade, mas não é o único desafio para um atleta transexual. Talvez por isso grande parte opte por assumir a nova identidade só depois de abandonar a carreira. O cirurgião JoãoDécio Ferreira, até 2011 o único que realizava operações de mudança de sexo no Serviço Nacional de Saúde (SNS), em Santa Maria, Lisboa, explica a transexualidade de forma simples: "Um transexual é alguém que nasceu com corpo masculino e cérebro feminino, ou vice-versa". E para fazer com que o corpo corresponda ao cérebro são necessários anos de consultas de acompanhamento, terapia hormonal – que dura toda a vida – e cirurgias complementares. Todo o processo pode custar entre 25 e 27 mil euros.

"Num processo de reatribuição sexual, para a fase pré-operatória estima-se um período de cerca de três anos", sublinha a equipa da Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, neste momento o único hospital público que faz este tipo de cirurgias, após a saída de João Décio Ferreira do SNS.

Para lá da não-aceitação entre os pares, a questão do doping é outro dos entraves para os desportistas, nomeadamente na transição de mulher para homem. "Os atletas transexuais são um desafio único para as autoridades desportivas, que têm de decidir sobre a sua elegibilidade", explica a Record António Júlio Nunes, jurista da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP). A testosterona, utilizada na terapêutica hormonal na passagem de mulher para homem, "aumenta a força e massa muscular, tamanho ósseo, conteúdo mineral e hemoglobina" e é uma substância proibida, ao contrário do estrogénio, utilizado na transição de homem para mulher. Apenas os atletas que tomam testosterona necessitam de requerer uma AUT (Autorização para a Utilização Terapêutica), o que não quer dizer que possam ter níveis superiores da hormona no corpo. "Têm de ter uma exposição androgénica fisiológica comparável, mas não superior, a um homem eugonadal", explica António Júlio Nunes.

COI exige dois anos após operação

Em 2003, o Comité Olímpico Internacional (COI) aprovou o regulamento que permite a transexuais participar em competições olímpicas. No entanto, para evitar qualquer vantagem competitiva, o COI exige que "a elegibilidade não tenha início antes de decorridos dois anos sobre a gonadectomia [cirurgia de retirada dos ovários ou testículos]", frisa António Júlio Nunes, da ADoP. Depois da cirurgia são exigidas outras condições: as alterações anatómicas têm de estar concluídas (inclusive os genitais), o reconhecimento legal do sexo deve estar confirmado pelas autoridades, além da prova de que a terapêutica hormonal está a ser administrada de forma verificável e por um período de tempo suficiente para minimizar qualquer vantagem.

Luta pelo direito de competir entre iguais

A vida de Mianne Bagger tem sido feita de vitórias. Não apenas contra o preconceito, mas pelo direito de competir entre as mulheres. 
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Mianne Bagger

A golfista australiana, nascida na Dinamarca em 1965, iniciou a terapia hormonal aos 27 anos e três anos mais tarde submeteu-se a cirurgias para a mudança de sexo. Depois continuou a praticar a modalidade que abraçara aos 12 anos, mas agora como mulher. Chegou a integrar o top 10 das amadoras na Austrália – sempre com muitas golfistas a considerarem-se em desvantagem –, até que decidiu tornar-se profissional.Só que não tardou a perceber que a maioria dos circuitos no Mundo não autorizavam a presença. A pressão mediática acabou por ajudar a que disputasse um torneio profissional na Austrália, em 2004, mas as portas foram-lhe barradas, tanto no seu país como nos EUA, onde a líder do LPGA Tour fez questão de dizer que apenas mulheres "por nascimento" podiam integrar o circuito. Na Europa, o Ladies European Tour acabou por autorizar a sua participação, ainda em 2004, mas a LPGA só "quebrou" em 2010. 
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Michelle Dumaresq

Não só pela pressão mediática em torno de Bagger mas também pelo processo judicial de Lana Lawless, igualmente impedida de integrar aquele circuito. Uma batalha que a ciclista (BTT) Michelle Dumaresq também travou no Canadá. A federação chegou a considerar que ela devia abandonar a modalidade, mas depois de acesa discussão com a UCI, acabou por permitir que competisse. Isto debaixo dos protestos das outras ciclistas...

Atletismo

Foi 6.ª nos Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000, 7.ª no Mundial de Edmonton, em 2001, e medalha de bronze nos Campeonatos da Europa de 1998 e 2002. Tinha como melhor marca pessoal 4,70 m, que ainda hoje é o quarto melhor registo da Alemanha.

"Há muitos anos que me sinto num corpo estranho, e quem me conhece vê-o da mesma forma que eu. Sou um homem num corpo de mulher". Foi com esta declaração que a 21 de novembro de 2007, então com 27 anos, Yvonne Buschbaum – que se debatia já há algum tempo com algumas lesões – anunciou que ia retirar-se das competições para iniciar a terapia hormonal (incluindo a proibida testosterona), para depois se submeter à cirurgia com vista à mudança de sexo. "Estou consciente de que a questão da transexualidade é um tema difícil, mas não quero ficar num jogo de escondidas com a verdade. Peço a compreensão do público, peço que respeitem a minha decisão e não tirem conclusões erradas", disse, ainda. Tim Lobinger, atleta alemão do salto com vara, reagiu de forma curiosa quando soube da intenção de Yvonne. "É preciso ter ‘tomates’ para tomar uma decisão destas". Em janeiro de 2008 anunciou que passaria a chamar-se Balian Buschbaum e nunca pensou em voltar a competir. Mas não deixou o desporto. Balian tornou-se "personal trainer" e chegou a posar como modelo em algumas revistas.

ATLETISMO

Yvonne Buschbaum - Salto com vara

Foi 6.ª nos Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000, 7.ª no Mundial de Edmonton, em 2001, e medalha de bronze nos Campeonatos da Europa de 1998 e 2002. Tinha como melhor marca pessoal 4,70 m, que ainda hoje é o quarto melhor registo da Alemanha.
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Yvonne Buschbaum
"Há muitos anos que me sinto num corpo estranho, e quem me conhece vê-o da mesma forma que eu. Sou um homem num corpo de mulher". Foi com esta declaração que a 21 de novembro de 2007, então com 27 anos, Yvonne Buschbaum – que se debatia já há algum tempo com algumas lesões – anunciou que ia retirar-se das competições para iniciar a terapia hormonal (incluindo a proibida testosterona), para depois se submeter à cirurgia com vista à mudança de sexo. "Estou consciente de que a questão da transexualidade é um tema difícil, mas não quero ficar num jogo de escondidas com a verdade. Peço a compreensão do público, peço que respeitem a minha decisão e não tirem conclusões erradas", disse, ainda. Tim Lobinger, atleta alemão do salto com vara, reagiu de forma curiosa quando soube da intenção de Yvonne. "É preciso ter ‘tomates’ para tomar uma decisão destas". Em janeiro de 2008 anunciou que passaria a chamar-se Balian Buschbaum e nunca pensou em voltar a competir. Mas não deixou o desporto. Balian tornou-se "personal trainer" e chegou a posar como modelo em algumas revistas.

Heidi Krieger - Lançamento do peso

A medalha de ouro que ganhou no Europeu de Estugarda, em 1986, faz parte do troféu anualmente atribuído na Alemanha a personalidades que se evidenciam na luta contra o doping. É um dos rostos mais visíveis das vítimas da política de dopagem massiva da antiga RDA.
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Heidi Krieger
Heidi foi uma das milhares de atletas sistematicamente dopadas por treinadores e médicos na antiga RDA, país que queria dominar o desporto olímpico pela via farmacológica. Com apenas 16 anos eram-lhe dados compridos que julgava serem vitaminas e suplementos naturais, mas que na realidade não passavam de esteroides anabolizantes, incluindo testosterona. As consequências destas substâncias em plena puberdade foram devastadoras. As jovens começaram a ter pelos no peito, voz mais grave, feições masculinas, ciclos menstruais irregulares e o sistema reprodutivo seriamente afetado. Viram o corpo mudar para sempre. Em 1997, Heidi decidiu assumir-se como homem e iniciou o processo de transição, passando a chamar-se Andreas. Mas numa entrevista à BBC reconheceu não saber até que ponto a sua transexualidade não estará ligada às substâncias que involuntariamente ingeriu. "Costumo dizer que eles mataram a Heidi. É difícil dizer se sem o doping hoje seria Heidi ou não, mas ao menos poderia ter sido eu a fazer essa escolha... Retiraram-me a minha identidade". Em 2000, já na pele de Andreas Krieger, foi testemunha no julgamento de Manfred Ewald, líder do programa de desporto e presidente do comité olímpico da Alemanha de Leste, e Manfred Hoeppner, diretor médico. Foram ambos condenados. Andreas é casado com Ute Krause, uma nadadora que também foi vítima do doping.

«São das pessoas mais discriminadas»

Ser transexual não é propriamente uma escolha, mas a partir do momento em que as pessoas o assumem, passam por momentos complicados, conforme nos conta Marta Ramos, coordenadora de projetos da ILGA, associação que luta pelos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transgénero. "As pessoas transexuais são das mais discriminadas", sublinha. "E quando decidem submeter-se a cirurgias, não o fazem porque lhes apetece. Isto tem impacto na vida imediata, no grupo de amigos, na família, nos estudos, etc., e estão cientes disso. A discriminação sente-se a todos os níveis – no acesso a bens e serviços, andar na escola, usar uma casa de banho ou ter ou não emprego."

A questão da identificação foi um grande problema, até há quatro anos. "Em Portugal a lei que entrou em vigor em 2011 permite mudar no registo civil o nome e o sexo sem ser necessário haver intervenções cirúrgicas. Antes, para uma pessoa ver a sua identidade reconhecida, tinha de processar o Estado. Esta lei foi uma grande conquista", congratula-se Marta Ramos.

OUTROS CASOS

COI precipitou escolha de Erika Schnigger

A esquiadora Erika Schnigger foi campeã mundial em 1966 e hoje dirige uma escola de esqui na Áustria, onde os alunos a tratam por Erik. 
 
Erika Schnigger

Em 1968 o Comité Olímpico Internacional ordenou que se submetesse a um exame, porque tinha dúvidas quanto ao seu género, e descobriu-se que Erika era um homem, mas que tinha nascido com órgãos sexuais internos. Submeteu-se a terapia hormonal, a cirurgias, e hoje é um homem. Casado e com filhos.

Futebolista criado como uma mulher

O central da seleção de futebol da Samoa Americana nasceu homem, aparece nas fichas de jogo como Johnny Saelua, mas entre a equipa é Jaiyah Saelua, mulher e plenamente aceite. 

Jaiyah Saelua
É uma "fa’afafine", uma minoria sexual do país considerada um terceiro género. Veste-se e age como uma mulher (foi criado como tal) e não realizou cirurgia de mudança de sexo. Participou nas eliminatórias para o Mundial de 2014.

Rei da montanha que agora é Philippa York

O escocês Robert Millar dominou a montanha na Volta a França de 1984 e foi 4.º na geral, atrás de Fignon, Hinault e Lemond. Correu ainda na Vuelta e no Giro, permanecendo ligado ao ciclismo depois de abandonar a carreira, como preparador físico. Mas em 2003 desapareceu. 
 
Philippa York

Quatro anos mais tarde o jornal "Daily Mail" encontrou-o transformado numa mulher. Agora chama-se Philippa York e nunca falou publicamente sobre a sua transexualidade.

O marine que disputou o US Open feminino

Apaixonado pelo ténis, Richard Raskin era médico oftalmologista na Marinha norte-americana mas, depois de casar e ter um filho, em 1975 decidiu submeter-se a um tratamento para mudar de sexo. Renée Richards passou a ser tenista profissional e chegou a ser finalista do US Open em pares mistos (1977), com Ilie Nastase. Foi treinadora de Navratilova.

* Um estudo bem elaborado para tirar as devidas ilações.

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