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IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
06/01/15
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Um cartoon vale
por mil palavras
Um bom cartoon raramente é desenhado a
traço grosso. A coragem de quem reduz um momento ou um contexto a uma
quadrícula de desenho representa, simultaneamente, um desafio largo de
abrangência e um terrível esforço de síntese. De forma muito semelhante a
quem procura contar estórias na formatação de uma canção, um
cartoonista procura passar uma mensagem forte num curto espaço, com ou
sem legenda, mas com um "punch-line" que demanda muito mais ao que está
implícito do que ao que denota. Este é um dos segredos da síntese,
resguardar para o pensamento e reflexão dos outros a imagem da vida que
se mostra em desenho. É, no fundo, um apelo à coragem dos outros.
Em
1992, o cartoonista António desenhou de forma brilhante João Paulo II
com um preservativo enfiado no nariz, quando o Papa criticou o uso do
preservativo numa jornada pastoral em África. As reacções à publicação
no jornal "Expresso" foram semelhantes a um furacão indignado,
alimentado pela polémica de quem não admitia que a síntese se fizesse
por uma metáfora. Uma espécie de Jihad católica portuguesa levantou-se
em coro indignado, como Kruz Abecassis (na altura, presidente da Câmara
de Lisboa) se havia indignado aquando da exibição de "Je vous salue,
Marie", de Jean-Luc Godard, na Cinemateca num verão quente de 1985. É
nestes momentos que a Igreja Católica faz os cálculos e conta com poucos
devotos: o abaixo-assinado contra a caricatura de António, discutido no
Parlamento, esperava cerca de um milhão de assinaturas mas esgotou o
seu prazo de validade com 28 mil indignados contra o desaforo papal.
Quando António volta a aproximar um preservativo de um sumo pontífice,
em 2009, enfiando-o na cabeça do Papa Bento XVI já só recebeu duas
cartas de indignação. Neste momento, até o Papa admitia o uso do
preservativo para evitar a contaminação com o vírus da sida,
nomeadamente em África. Mudam-se os tempos, mudam-se os cartoons. É
também por isso que a arte é uma prova da realidade dos homens no tempo à
espera de ser interpretada.
Não é um privilégio português ou do
catolicismo, pelo contrário. Basta recordar, no passado recente, às
reacções do Islão à publicação de duas representações de Maomé num
jornal dinamarquês e posterior divulgação na Noruega. Os protestos no
mundo muçulmano foram violentos e merecerem, eles mesmos, diversos
cartoons. Talvez porque seja um retrato mais fiel da realidade, uma
fotografia não convoca tamanha indignação. Qualquer representação é mais
forte e mais disruptiva, menos anulável pelo antídoto do contrafactual.
Numa representação, os factos estão à mão do pensamento e fazem um
apelo à interpretação e ao juízo. Apesar de todos os prismas de
aferição, a realidade ainda é o que é.
O presidente da Turquia,
Recep Erdogan, não gosta de cartoons. Sobretudo os que o representam a
ele mesmo e talvez porque não admita o confronto com a sua própria
realidade. Com pressões editoriais fortíssimas sobre a Imprensa, com
processos judiciais sucessivos contra a comunicação que os publica, o
regime islamista de Erdogan faz tábua rasa da liberdade de Imprensa. As
ameaças e as detenções arbitrárias de jornalistas da imprensa e
televisão fazem do presidente um cartoon de si mesmo quando a principal
acusação que sobre ele pende é a de tirania. Num momento em que a União
Europeia vive as eleições gregas como a principal ameaça à democracia
germânica e especulativa que vingou nos últimos anos, o exemplo da
Turquia é paradigmático. Durão Barroso, em 2006 e enquanto presidente da
Comissão Europeia, assegurava que o processo de adesão da Turquia à
União Europeia iria alongar-se até 2021.
Compreende-se a dificuldade
face à diversidade do contexto turco. Para uma Europa que é toda ela um
cartoon, onde a liberdade de escolha grega já lançou a fera alemã na
maior campanha de ingerência eleitoral de que há memória na democracia
de um país europeu soberano, a realidade ainda é o que é. A tirania não
fica bem na fotografia da Europa nem em nenhum cartoon turco. Mas nunca a
realidade de ambos esteve tão próxima.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
06/01/15
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