A quadratura do círculo
Nada melhor para evitar o presente que fazer
sonhar com o futuro. Se sempre funcionou no passado com os Estados
Gerais, as Convenções e as paixões de Guterres e Sócrates também há-de
funcionar agora…
Se é verdade que a história se repete, talvez haja poucos sítios onde repita tanto como por cá.
Em 1890, na revista de Portugal, Eça de Queiroz, feito espectador,
escrevia que, depois do ultimatum: "… se pode supor, que a nação enfim
desperta do seu sono ou indiferença, pronta a retomar a posse de si
mesma, e certa de que a vida que vinha levando nos últimos vinte anos a
votava irrevogavelmente às humilhações e aos desastres, decidira, num
ingente esforço de vontade começar uma vida nova…"
Era assim que estávamos quando nos caiu em cima a terceira bancarrota da democracia. Só que:
"… a ilusão breve se sumiu pelos ares… mas se o ultimatum não logrou
produzir um movimento que viesse trazer transformações essenciais à
nossa vida administrativa e económica… as manifestações tumultuárias que
o acompanharam, vieram alterar o equilíbrio dos elementos regulares com
que a política jogava, fazendo nela aparecer elementos novos, novos
factores com que é forçoso doravante contar, e que, coisa estranha!,
fazem o Portugal de 1890, politicamente diferente do Portugal de 1889."
E aqui estamos, três anos depois dos sacrifícios que a memória curta
alcandorou a patamares de sacrifício que "obrigavam" à dita mudança.
Vinham aí as "reformas". E, como de costume, pagámos os impostos… As
reformas, descobrem todos os Calistos à chegada, são coisa mesmo
difícil.
António Costa, que tem a seu favor umas mãos politicamente calejadas, sabe-o bem e sabe o que aí vem.
Sabe que precisa de criar a ilusão de que a mudança depende mais dele
do que alguma vez acontecerá ao mesmo tempo que se compromete com cada
vez menos, para que a tolerância, cada vez menos elástica, se estenda
muito mais que a passadeira que, agora lhe querem pôr à frente.
Daí à "Agenda para década" foi um saltinho. Nada melhor para evitar o
presente que fazer sonhar com o futuro. Se sempre funcionou no passado
com os Estados Gerais, as Convenções e as paixões de Guterres e Sócrates
também há-de funcionar agora…
Sobretudo se acompanhadas de umas proclamações - " se pensarmos como a
direita, acabamos a governar como a direita!" - para desarmar - esforço
porventura desnecessário -, os movimentos políticos que cá sonhavam
poder como o Podemos, mas que se reúnem só para admirar o busto do
secretário-geral do PS.
Como o Dr. Costa não pensa como a direita já não precisa de se maçar com os detalhes do dia-a-dia até à chegada do futuro.
Reposição de cortes, aumento "gradual" do salário mínimo, pagamento
ou reestruturação da dívida, fiscalidade, sustentabilidade da segurança
social? Tudo isso será fácil, pois não pensamos como a direita! De
"reformas", nem pio, claro está, se ninguém as conseguiu até hoje…
Para distrair ainda mais, vem o Dr. Santos Silva, com a bravata do
costume, a explicar que, são diferentes e por aqui não vai haver
Hollandices - enquanto sobre o Tratado Orçamental e a sua revisão, nem
pio que a Sr. Merkel já mandou calar tanto socialista que ainda repara
neles…
E assim chegamos a 2015, que só parece diferente de 2011 porque já
nos esquecemos de 2005. Ou 1995. Com memória de gaivota cá vamos
deixando o Dr. Costa fazer a quadratura do círculo para que tudo
recomece. Na Câmara, a governar, vai aumentado impostos e taxas. Na
oposição é só amanhãs que cantam.
Voltando a Eça: "É a nossa pobreza geral que complica singularmente a
nossa vida política". A nossa complacência também ajuda muito,
acrescentaria eu em contradição apenas aparente.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
11/11/14
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