Aquele Verão morno de 2013
Parece que a
Grândola já não satisfaz os manifestantes que interrompem membros do
Governo em cerimónias públicas. Talvez os próprios intérpretes se tenham
enjoado da aborrecida cantilena, talvez andem impacientes com os fracos
resultados do exercício. Certo é que do folclore alentejano saltaram
brevemente para as gargalhadas forçadas, tentaram os insultos e, com a
impaciência ao rubro, passaram para a agressão.
Foi essa a
estratégia adoptada por um sr. Manuel Cruz, descrito na imprensa como
antigo dirigente sindical, ao abordar a ministra da Agricultura e
Etecetera com um cartaz e o segurança da ministra com um murro, evidente
na transmissão da SIC Notícias e omitido em outros canais. Detido pela
PSP, o sr. Cruz exibia o sorriso de quem alcançou o digníssimo estatuto
de mártir. Se calhar está enganado.
Por uma vez, vasculhei todos
os sites jornalísticos disponíveis e empenhei-me a percorrer os
comentários dos leitores à notícia. Poucos, muito poucos, eram
simpáticos para com o sr. Cruz, ainda que poucos, muito poucos,
mostrassem defender as exactas figuras que o sr. Cruz deseja ver
demitidas. Percebo o povo: ao contrário do que sugere imerecida fama,
também eu sinto escassa consideração pela estatista gente que nos tutela
- e consideração nenhuma pela dra. Cristas, que aliás não destoaria num
comité do Bloco de Esquerda.
Porém, tal facto não me dá o direito
de perseguir a dra. Cristas ou quem me aprouver sob o pretexto de que a
legitimidade eleitoral é irrelevante quando comparada com as minhas
opiniões. Sabotar a lengalenga de governantes não é apenas um acto de
má-criação, tolerável na medida em que os governantes mostram igualmente
um respeito residual pelos cidadãos: é uma exibição de credenciais
democráticas ou, melhor dizendo, da falta delas. Por terrível que a
situação seja, é de crer que seria bastante pior caso a desdita a
entregasse aos "espontâneos" autores dos protestos. Por mais que algumas
pessoas estejam fartas de um Governo, convém evitar a tentação de
falarem por todas as restantes. E, já agora, de impedir que as restantes
falem.
Sendo notório que, conforme se repete por aí, os
portugueses andam irritados com os senhores que desastradamente os
tutelam, não consta que andem menos desiludidos face às alternativas e,
sobretudo, menos ofendidos com umas dúzias de usurpadores da escolha
colectiva, desejos de transformar o descontentamento num caos sobre o
qual possam reinar. Com a irresponsabilidade que ornamenta a sua
reforma, por exemplo Mário Soares desatou a lançar avisos que soam a
ameaças de violência popular. Óptimo para ele, mas numa época em que o
dr. Soares ocupava o lado oposto da trincheira, a violência saiu pela
culatra dos instigadores. Principalmente a norte, o Verão Quente de 1975
não se deveu à meteorologia: se neste 2013 fresquinho o bom povo não
mexerá uma palha na protecção de um Governo trôpego, é possível que mexa
duas na defesa da liberdade. Fica a ameaça, perdão, o aviso.
Domingo, 2 de Junho
Jurisprudência
O
juiz Rui Teixeira, que combateu prepotências diversas na instrução do
processo Casa Pia, voltou a desafiar os poderes instituídos e os difusos
e proibiu os pareceres técnicos do sector da reinserção social de
usarem a mistela linguística a que se chama Acordo Ortográfico. É lê-lo:
"Fica advertida que deverá apresentar as peças em Língua Portuguesa e
sem erros ortográficos decorrentes da aplicação da Resolução do Conselho
de Ministros 8/2011, (...) a qual apenas vincula o Governo e não os
tribunais." E prossegue: "Nos tribunais, pelo menos neste, os factos não
são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar (...) e a Língua
Portuguesa permanece inalterada até ordem em contrário." Numa época em
que a palavra "irreverente" se aplica às criaturas mais conformistas da
Terra, eis um caso de irreverência autêntica. Às vezes, só às vezes, um
magistrado que desrespeita a lei apenas prova a imensa estupidez desta.
Quinta-feira, 6 de Junho
"Rigor mortis"
A
nossa imprensa noticiou o homicídio, em Paris, de um "militante de
extrema-esquerda" às mãos de um bando de "extrema-direita e neonazi". Os
pormenores lexicais são todo um programa. Repare-se, para começar, que o
jovem assassinado não teve direito a epíteto de "neoestalinista",
"neomaoista" ou "neo-albanês": identificá-lo apenas como pertencente à
"extrema-esquerda" basta e não compromete a inocência. Depois, note-se
que os assassinos não mereceram a palavrinha "alegados", que costuma
acompanhar casos de violência sempre que a violência é perpetrada por
certos grupos. Por fim, apesar de tudo, sublinhe-se a especificidade das
classificações, inexistente quando os criminosos partilham outras
crenças, por regra omitidas nas notícias que tratam de outras vítimas,
pelos vistos menos respeitáveis, e outras mortes, evidentemente menos
interessantes.
Sexta-feira, 7 de Junho
O refúgio do liberalismo em Portugal
Há
muito tempo que não vejo jogos de futebol. Há pouco que comecei a ver
com frequência debates televisivos sobre futebol, do Trio de Ataque ao
Prolongamento, de O Dia Seguinte ao Mais Futebol. São, como se diz que
Coimbra foi, uma lição. Desde logo, sobre a capacidade humana de repetir
oito a doze vezes por minuto a palavra "estrutura" enquanto sinónimo de
direcção, organização ou hierarquia. Porém, o vago marxismo lexical
termina aí: os debates principalmente revelam hordas de liberais, "neo"
ou "ultra", que, para nosso azar, não existem nas demais dimensões do
país.
No mundo dos comentadores da bola, as ideias dominantes que
determinaram a corrente e desgraçada situação pátria encontram-se
viradas do avesso. Lá, ninguém hesita em defender que o treinador X ou o
jogador Z acabem sumariamente demitidos por incompetência. Ninguém
estranha que os salários, mesmo que desmesurados, sejam proporcionais ao
mérito. Ninguém culpa os ricos. Ninguém despreza a necessidade de
exigência. Ninguém deixa de louvar os clubes que se governam com
orçamentos equilibrados e minúsculos. Ninguém apoia a
irresponsabilidade. Ninguém se lembra de incentivar o recurso ao crédito
para investimentos ruinosos. Ninguém percebe as equipas com plantéis
excedentários. Ninguém propõe a imposição da igualdade em detrimento da
liberdade. Ninguém atribui às vitórias da Alemanha as causas da penúria
indígena. Ninguém legitima a promoção da violência dentro e fora do
campo. Ninguém abomina a concorrência. Etc.
Para alguns, entre os
quais me incluo, o futebol pode não passar de um aborrecimento de hora e
meia (mais uns minutos no caso do Benfica). Já a conversa em redor do
futebol, à primeira e segunda vistas um aborrecimento maior, é, quando
esmiuçada com detalhe, não só uma lição, insisto, mas um refúgio e um
consolo perante o socialismo que contamina o resto da sociedade. O
futebol não é socialista. Se não me obrigar a vê-lo, que Deus o proteja.
Antes a morte
Operático
como de costume, Freitas do Amaral irrompeu a explicar que a crise
vigente só é comparável à de 1383--85 e ao jugo Filipino, dado que está
em causa a independência nacional. É lá com ele, que culpa a política
alemã pelas agruras internas, além, claro, do Governo actual. O prof.
Freitas não culpa qualquer governo anterior, incluindo aquele a que
emprestou a portentosa lucidez e que, por acaso, apressou a descida de
Portugal aos abismos como nenhum outro. Não admira. Após uma ausência de
que ninguém dera conta, o prof. Freitas regressou recentemente à
emissão regular do tipo de palpites que definem a sua natureza, talvez
com esperança de se tornar "presidenciável" a médio prazo. Eu, que já vi
de tudo, não digo nada, excepto que seria preferível perder a
independência entretanto.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
09/06/13
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