13/06/2013

ALBERTO GONÇALVES

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Aquele Verão morno de 2013

Parece que a Grândola já não satisfaz os manifestantes que interrompem membros do Governo em cerimónias públicas. Talvez os próprios intérpretes se tenham enjoado da aborrecida cantilena, talvez andem impacientes com os fracos resultados do exercício. Certo é que do folclore alentejano saltaram brevemente para as gargalhadas forçadas, tentaram os insultos e, com a impaciência ao rubro, passaram para a agressão. 

Foi essa a estratégia adoptada por um sr. Manuel Cruz, descrito na imprensa como antigo dirigente sindical, ao abordar a ministra da Agricultura e Etecetera com um cartaz e o segurança da ministra com um murro, evidente na transmissão da SIC Notícias e omitido em outros canais. Detido pela PSP, o sr. Cruz exibia o sorriso de quem alcançou o digníssimo estatuto de mártir. Se calhar está enganado.

Por uma vez, vasculhei todos os sites jornalísticos disponíveis e empenhei-me a percorrer os comentários dos leitores à notícia. Poucos, muito poucos, eram simpáticos para com o sr. Cruz, ainda que poucos, muito poucos, mostrassem defender as exactas figuras que o sr. Cruz deseja ver demitidas. Percebo o povo: ao contrário do que sugere imerecida fama, também eu sinto escassa consideração pela estatista gente que nos tutela - e consideração nenhuma pela dra. Cristas, que aliás não destoaria num comité do Bloco de Esquerda.

Porém, tal facto não me dá o direito de perseguir a dra. Cristas ou quem me aprouver sob o pretexto de que a legitimidade eleitoral é irrelevante quando comparada com as minhas opiniões. Sabotar a lengalenga de governantes não é apenas um acto de má-criação, tolerável na medida em que os governantes mostram igualmente um respeito residual pelos cidadãos: é uma exibição de credenciais democráticas ou, melhor dizendo, da falta delas. Por terrível que a situação seja, é de crer que seria bastante pior caso a desdita a entregasse aos "espontâneos" autores dos protestos. Por mais que algumas pessoas estejam fartas de um Governo, convém evitar a tentação de falarem por todas as restantes. E, já agora, de impedir que as restantes falem. 

Sendo notório que, conforme se repete por aí, os portugueses andam irritados com os senhores que desastradamente os tutelam, não consta que andem menos desiludidos face às alternativas e, sobretudo, menos ofendidos com umas dúzias de usurpadores da escolha colectiva, desejos de transformar o descontentamento num caos sobre o qual possam reinar. Com a irresponsabilidade que ornamenta a sua reforma, por exemplo Mário Soares desatou a lançar avisos que soam a ameaças de violência popular. Óptimo para ele, mas numa época em que o dr. Soares ocupava o lado oposto da trincheira, a violência saiu pela culatra dos instigadores. Principalmente a norte, o Verão Quente de 1975 não se deveu à meteorologia: se neste 2013 fresquinho o bom povo não mexerá uma palha na protecção de um Governo trôpego, é possível que mexa duas na defesa da liberdade. Fica a ameaça, perdão, o aviso. 

Domingo, 2 de Junho
Jurisprudência
O juiz Rui Teixeira, que combateu prepotências diversas na instrução do processo Casa Pia, voltou a desafiar os poderes instituídos e os difusos e proibiu os pareceres técnicos do sector da reinserção social de usarem a mistela linguística a que se chama Acordo Ortográfico. É lê-lo: "Fica advertida que deverá apresentar as peças em Língua Portuguesa e sem erros ortográficos decorrentes da aplicação da Resolução do Conselho de Ministros 8/2011, (...) a qual apenas vincula o Governo e não os tribunais." E prossegue: "Nos tribunais, pelo menos neste, os factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar (...) e a Língua Portuguesa permanece inalterada até ordem em contrário." Numa época em que a palavra "irreverente" se aplica às criaturas mais conformistas da Terra, eis um caso de irreverência autêntica. Às vezes, só às vezes, um magistrado que desrespeita a lei apenas prova a imensa estupidez desta. 

Quinta-feira, 6 de Junho
"Rigor mortis"
A nossa imprensa noticiou o homicídio, em Paris, de um "militante de extrema-esquerda" às mãos de um bando de "extrema-direita e neonazi". Os pormenores lexicais são todo um programa. Repare-se, para começar, que o jovem assassinado não teve direito a epíteto de "neoestalinista", "neomaoista" ou "neo-albanês": identificá-lo apenas como pertencente à "extrema-esquerda" basta e não compromete a inocência. Depois, note-se que os assassinos não mereceram a palavrinha "alegados", que costuma acompanhar casos de violência sempre que a violência é perpetrada por certos grupos. Por fim, apesar de tudo, sublinhe-se a especificidade das classificações, inexistente quando os criminosos partilham outras crenças, por regra omitidas nas notícias que tratam de outras vítimas, pelos vistos menos respeitáveis, e outras mortes, evidentemente menos interessantes. 

Sexta-feira, 7 de Junho
O refúgio do liberalismo em Portugal
Há muito tempo que não vejo jogos de futebol. Há pouco que comecei a ver com frequência debates televisivos sobre futebol, do Trio de Ataque ao Prolongamento, de O Dia Seguinte ao Mais Futebol. São, como se diz que Coimbra foi, uma lição. Desde logo, sobre a capacidade humana de repetir oito a doze vezes por minuto a palavra "estrutura" enquanto sinónimo de direcção, organização ou hierarquia. Porém, o vago marxismo lexical termina aí: os debates principalmente revelam hordas de liberais, "neo" ou "ultra", que, para nosso azar, não existem nas demais dimensões do país.
No mundo dos comentadores da bola, as ideias dominantes que determinaram a corrente e desgraçada situação pátria encontram-se viradas do avesso. Lá, ninguém hesita em defender que o treinador X ou o jogador Z acabem sumariamente demitidos por incompetência. Ninguém estranha que os salários, mesmo que desmesurados, sejam proporcionais ao mérito. Ninguém culpa os ricos. Ninguém despreza a necessidade de exigência. Ninguém deixa de louvar os clubes que se governam com orçamentos equilibrados e minúsculos. Ninguém apoia a irresponsabilidade. Ninguém se lembra de incentivar o recurso ao crédito para investimentos ruinosos. Ninguém percebe as equipas com plantéis excedentários. Ninguém propõe a imposição da igualdade em detrimento da liberdade. Ninguém atribui às vitórias da Alemanha as causas da penúria indígena. Ninguém legitima a promoção da violência dentro e fora do campo. Ninguém abomina a concorrência. Etc.
Para alguns, entre os quais me incluo, o futebol pode não passar de um aborrecimento de hora e meia (mais uns minutos no caso do Benfica). Já a conversa em redor do futebol, à primeira e segunda vistas um aborrecimento maior, é, quando esmiuçada com detalhe, não só uma lição, insisto, mas um refúgio e um consolo perante o socialismo que contamina o resto da sociedade. O futebol não é socialista. Se não me obrigar a vê-lo, que Deus o proteja.

Antes a morte
Operático como de costume, Freitas do Amaral irrompeu a explicar que a crise vigente só é comparável à de 1383--85 e ao jugo Filipino, dado que está em causa a independência nacional. É lá com ele, que culpa a política alemã pelas agruras internas, além, claro, do Governo actual. O prof. Freitas não culpa qualquer governo anterior, incluindo aquele a que emprestou a portentosa lucidez e que, por acaso, apressou a descida de Portugal aos abismos como nenhum outro. Não admira. Após uma ausência de que ninguém dera conta, o prof. Freitas regressou recentemente à emissão regular do tipo de palpites que definem a sua natureza, talvez com esperança de se tornar "presidenciável" a médio prazo. Eu, que já vi de tudo, não digo nada, excepto que seria preferível perder a independência entretanto.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
09/06/13

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