As famílias especiais e
com necessidades especiais
A Madalena tem 14 anos e é irmã do Miguel com 15 anos que tem défice
cognitivo e necessidades educativas especiais. Estão numa fase de
transição das suas vidas, agora que se irão separar no dia-a-dia. Até
aqui frequentavam o mesmo estabelecimento de ensino, agora o irmão vai
passar a integrar uma escola de ensino especial, mais adaptada e
vocacionada às suas necessidades. A Madalena parece viver esta mudança
com ambivalência...
“Eu sempre achei que o
Miguel devia estar numa escola especial, mais preparada para desenvolver
as suas capacidades... mas agora... não sei... como é que ele vai estar
nos recreios sozinho... sem mim... Às vezes eu defendia-o, porque ele
se humilhava a si próprio. Nunca suportei que gozassem com ele
(chora)... Era como se gozassem comigo também... Mas depois quando ele
ia ter com os meus colegas também me irritava porque ele chateava -os!
Mas também não conseguia mandá-lo embora...Eu adoro o meu irmão... Ele é
só... diferente...”
Viver e crescer numa família onde uma
das crianças tem características que a diferencia das outras – seja uma
doença, um défice cognitivo ou deficiência física – será um caminho que
trará a todos desafios e recompensas. Irmãos e pais serão chamados a
adaptar-se e ajustar-se a uma nova forma de vida, ou pelo menos, uma
vida diferente da das famílias comuns.
Sabemos que estas são
famílias com exigências particulares a vários níveis: ao nível das
rotinas, pelos tratamentos ou dedicação às necessidades do filho
diferente; ao nível financeiro, com despesas tantas vezes acrescidas por
esta condição; ao nível das limitações das actividades sociais, pela
impossibilidade de frequentarem certas atividades em conjunto; ao nível
do constrangimento de tempo para os outros filhos; e ao nível do cansaço
ou exaustão física e emocional que estes pais sentem muitas vezes,
tornando-os emocionalmente mais vulneráveis ou menos disponíveis.
Também
sabemos que nesta forma de vida, os irmãos saudáveis desenvolvem um
sentimento de proteção e responsabilidade, face a múltiplos aspetos da
vida do irmão diferente. Este facto não deverá ser olhado apenas com
medo ou receio de ser um fardo demasiado pesado. Os irmãos de alguém que
é diferente, são geralmente mais tolerantes e respeitadores da
diferença do outro, tendo um maior sentido de justiça social, uma
maturidade superior pelos desafios do seu dia-a-dia, aumentando-lhes
assim a compreensão das prioridades. E sobretudo, por aprenderem e
aceitarem que servir os outros faz parte da vida!
Ao longo do
crescimento da família, os pais deverão estar atentos e permitir que aos
filhos “saudáveis” exprimirem como sentem e vivem esta experiência,
para que no fundo possam ter expectativas realistas acerca do impacto
que esta condição tem na família.
Não falar, permite que se
instalem vazios aos quais os filhos reagem de forma muito diferente,
consoante a sua personalidade. Uns, mais inibidos, adotam muitas vezes
atitudes de maior isolamento ou retraímento dentro da família, assumindo
um papel quase ausente. Outros, mais extrovertidos, passam a agir
através da agitação motora ou verborreia, por forma a ocupar este espaço
de vazio ou de não ditos, encarnando o papel de “animadores” da
família. Em ambos os casos, poderá ser um fardo demasiado pesado para
carregar, e qualquer um dos papéis, terá custos grandes, que a todo o
momento se poderão tornar evidentes, através de sintomas ou alterações
de comportamento reveladores deste sofrimento e mal-estar.
Enquanto
pais, ter presente a importância de estar atentos à tendência natural
de “colocar” no filho saudável, as exigências ou expectativas que sabem
não poder realizar com o filho “diferente”. Isto sim, poderá representar
um grande peso!
Comportamentos que os filhos saudáveis
apresentam, que apenas caraterizam as várias etapas do desenvolvimento,
são muitas vezes sentidos por estes pais, como uma ameaça maior. Como se
estes comportamentos comprometessem o alcançar da “perfeição” tão
desejada ou projetada no filho saudável. Ter a capacidade de ir deixando
este filho poder Ser, mais ou menos como É, ao longo da sua vida, irá contribuir para a afirmação da sua individualidade e autonomia.
Sabemos
que neste contexto, esta é uma luta mais difícil de ser travada, quando
alguém sabe que nunca poderá competir com a diferença do irmão. Por
outro lado, também evitará maiores explosões de afirmação em fases de
maior fragilidade, como por exemplo, a da adolescência. Nesta fase,
poderá sair tudo aquilo que foi “calado” ou inibido até aqui, porque não
lhe foi permitido ou porque este irmão tem geralmente a tendência de
não querer ameaçar o equilíbrio e estabilidade familiar.
Socialmente,
os irmãos saudáveis têm muitas vezes que assistir e suportar
“agressões” ao irmão por parte dos pares ou da sociedade. Estes são
momentos geradores de sentimentos de forte injustiça e impotência, pela
sensação de que nunca o poderão proteger de tudo. Estes sentimentos são
muitas vezes calados ou mantidos à margem dos pais, exatamente com um
sentido de proteção, por saberem o quanto este é um tema que os preocupa
e aflige, e que também lhes desperta os mesmos sentimentos.
As
zangas ou momentos de agressividade que fazem parte do dia-a-dia e da
construção da relação de irmãos, bem como de qualquer outra relação, são
frequentemente sentidos pelos pais, como uma ameaça à estabilidade da
relação e do amor entre irmãos. Nestes momentos, os pais confrontam-se
com a sua finitude, bem como com a perspetiva futura de que os irmãos
saudáveis serão os herdeiros do cuidar do irmão diferente.
Ter um
irmão diferente é uma experiência que sabemos exigente e nem sempre
fácil, tal como para os pais também é difícil terem que se adaptar a
filhos com caraterísticas e necessidades tão distintas. Aqui há desafios
acrescidos à parentalidade! Os filhos saudáveis precisam sobretudo, em
alguns momentos, de serem olhados com fragilidade e vulnerabilidade,
para que sintam que estas características também lhes podem ser devidas,
sempre que precisarem de as manifestar.
A saúde mental de uma
família começa obrigatoriamente na saúde mental dos pais – a capacidade
que tiverem para preservar o seu espaço de casal; a aprendizagem de que a
diferença do filho não pode, nem deve ocupar todo o espaço da vida da
família – revela-se fundamental no ajustamento e adaptação daqueles que
vivem com alguém com necessidades especiais. Acreditando sempre, que
todos vão naturalmente encontrando o seu espaço de poder Ser Diferente
na Família!
Psicóloga clínica e terapeuta familiar
IN "PÚBLICO"
01/04/13
.
Sem comentários:
Enviar um comentário