HOJE NO
"PÚBLICO"
Casos de vendas abaixo do preço de custo quase triplicaram num ano
Processos na Autoridade da Concorrência aumentaram para 97, no ano das grandes promoções.
O número de novos casos de vendas abaixo do preço de custo que deram
entrada na Autoridade da Concorrência (AdC) aumentou de 35 para 97 em
apenas um ano. Os dados fornecidos ao PÚBLICO pelo regulador, relativos a
2012, mostram que este é o valor mais alto dos últimos três anos. Em
2010, apenas 28 processos abertos no âmbito das práticas restritivas do
comércio diziam respeito às vendas com prejuízo, quase quatro vezes
menos.
Do sector do leite à indústria do bacalhau, passando
pelo arroz e o pescado, foram várias as denúncias públicas desta prática
ao longo de 2012, ano profícuo em promoções e mediáticas apreensões de
artigos. Em Janeiro, a ASAE apreendeu 425 mil litros de leite vendidos
no Pingo Doce e no Continente, do grupo Sonae (dono do PÚBLICO), por,
alegadamente, estarem a ser comercializados com prejuízo, e a seguir fez
questão de tornar pública a operação.
Pouco depois, foram
detectados indícios noutros artigos, a maioria incluída num folheto
promocional do Continente, que oferecia produtos com 75% de desconto em
cartão. A AdC chegou a ter uma lista de mais de 70 produtos sob
suspeita.
No imediato, este tipo de práticas beneficia o
consumidor, ávido de preços baixos. Contudo, especialistas alertam para o
facto de esta pressão forçar as lojas concorrentes a baixarem os preços
aos produtos. Em consequência, tentarão reduzir a factura a pagar junto
dos seus fornecedores.
"A crise acelera a situação de empresas
com dificuldades e, a partir de certa altura, usam todos os meios para
tentar vender", diz João Vieira Lopes, presidente da Confederação do
Comércio e Serviços de Portugal (CCP). "O aumento das vendas com
prejuízo é uma consequência da crise", sublinha.
João Cruz
Ribeiro, advogado que tem seguido de perto estes processos, alerta que,
"a longo prazo, vender abaixo do preço de custo é prejudicial" e "lesa a
concorrência". "Com a redução do preço [ao consumidor final], o que
pode acontecer é ser pedido um desconto aos fornecedores a deduzir na
próxima factura", afirma.
No feriado do 1.º de Maio, a cadeia de
supermercados Pingo Doce abriu os telejornais graças a uma inesperada
promoção de 50% de desconto em quase todos os produtos, para quem
fizesse compras no valor mínimo de 100 euros. A corrida desenfreada às
lojas provocou discussões e confusões entre os clientes, levando mesmo a
PSP a intervir. Perante a acusação de estar a vender abaixo do preço de
custo e a suportar a megapromoção com a margem dos seus fornecedores, o
grupo Jerónimo Martins sustentou que a operação foi gerada pelo
investimento da empresa e de alguns dos seus parceiros de negócio.
A
campanha ajudou o Pingo Doce a aumentar as vendas em 2,4% entre Abril e
Junho, depois de um início de ano com quebras de 0,8% em comparação com
o mesmo período de 2011 (tendo em conta igual número de lojas). O grupo
liderado por Pedro Soares dos Santos assumiu custos extra de 10 milhões
de euros com a promoção do Dia do Trabalhador, encarando-os como
investimento para reforçar a marca.
O caso terminou com uma multa
de 29.927,88 euros, por cúmulo jurídico (mais 250 euros por custas com o
processo). A AdC concluiu que foram vendidos 15 produtos com prejuízo,
entre os quais açúcar, arroz, vinho, leite, café, flocos de cereais e
fraldas. A empresa contestou a coima em tribunal, recusando-se a pagar.
De acordo com a Jerónimo Martins, ainda não há decisão nos tribunais.
À espera das novas regras
Vender
abaixo do preço de custo é uma prática "transversal, do retalho
alimentar ao não alimentar", diz João Vieira Lopes. Mas acaba por ter
mais visibilidade no alimentar, porque "há maior concentração de
operadores", ou seja, "chama mais a atenção".
Dos 100 processos
abertos em 2012, no âmbito das práticas restritivas do comércio, 97%
referem-se a vendas abaixo do preço de custo. A Federação das Indústrias
Portuguesas Agro-alimentares (FIPA) prefere não se alongar nas
interpretações dos números da Autoridade, mas pede maior rapidez na
decisão do regulador. "Mais do que um incremento numérico, o que nos
preocupa é que haja uma maior eficácia na actuação e celeridade na
resolução dos processos", diz Pedro Queiroz, director-geral.
Por
seu lado, a Centromarca, Associação Portuguesa de Empresas de Produtos
de Marca, questiona o efeito prático destas denúncias. "Os dados revelam
que há uma maior preocupação das autoridades em fiscalizar ou maior
preocupação dos fornecedores em apresentar queixa à ASAE. Também mostram
que houve um maior aumento das promoções. Mas qual o efeito?", pergunta
João Paulo Girbal. O presidente da Centromarca recorda o caso da
promoção do 1.º de Maio feita pelo Pingo Doce. "O resultado final deste
caso foi uma condenação que não dava sequer para pagar um anúncio de
televisão pequeno", ironiza.
João Paulo Girbal acredita que o novo
regime das práticas restritivas do comércio, que o Governo está a
preparar, vai ter um efeito mais dissuasor, porque aumenta de forma
expressiva o valor máximo das coimas: 83 vezes superior ao da lei
actual. Passa de 30 mil euros (cúmulo jurídico) para 2,5 milhões de
euros, quando as contra-ordenações são praticadas por grandes empresas.
O
aumento dos novos casos de vendas com prejuízo "só demonstra que é
urgente a revisão da lei", diz o responsável da Centromarca. "A multa
deve ser dissuasora e suficientemente importante para que quem estiver a
pensar cometer esta infracção não o faça", defende.
Em Janeiro, o
Governo apresentou um pedido de autorização legislativa à Assembleia da
República para avançar com um novo regime de coimas. Enquanto o
documento não sai do Parlamento, a lei em vigor continua a determinar
valores mais reduzidos, cenário que, para Girbal, deixa a porta aberta a
práticas lesivas do comércio. "Os operadores podem aproveitar para
fazer mais promoções em que haja venda com prejuízo até que a lei não
saia."
Não foi possível ouvir a Associação Portuguesa das Empresas
da Distribuição (APED), que tem vindo a contestar o valor das coimas. A
APED, com 121 empresas associadas, já disse que há "um claro exagero"
que visa "proteger outros sectores, como o das grandes multinacionais de
grande consumo que operam no mercado nacional". Ainda esta semana, Luís
Reis, presidente da associação que reúne desde hipermercados a grandes
lojas como a Fnac ou o Aki, antecipava mais promoções em 2013. "É uma
tendência que se vai manter, porque vivemos um ano difícil, de
contracção muito importante no comércio. Sem grandes promoções, será
difícil para as famílias portuguesas suportarem a austeridade que lhes
está a ser pedida", afirmou.
As vendas no comércio têm descido à
medida da austeridade, e a aposta nos descontos foi a forma encontrada
pelo sector para atrair clientes às lojas. Nas montras, as promoções
parecem ter ganho lugar cativo. E, nas prateleiras dos hiper e
supermercados, sucedem-se ofertas e reduções de preços. Com menos
dinheiro para gastar, os portugueses encolheram a lista de compras até
ao limite e fazem escolhas pressionados pelo preço. A mudança no
comportamento dos consumidores reflecte-se nas estatísticas: entre
Outubro e Dezembro, o índice de vendas no comércio a retalho do INE caiu
7,2% em comparação com o período homólogo. Para o conjunto do ano de
2012, este índice diminuiu 6,7%.
* É o chamado dumping para tramar os pequenos produtores/fornecedores das grandes cadeias de distribuição.
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