04/02/2013

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HOJE NO
"PÚBLICO"

Casos de vendas abaixo do preço de custo quase triplicaram num ano

Processos na Autoridade da Concorrência aumentaram para 97, no ano das grandes promoções.

O número de novos casos de vendas abaixo do preço de custo que deram entrada na Autoridade da Concorrência (AdC) aumentou de 35 para 97 em apenas um ano. Os dados fornecidos ao PÚBLICO pelo regulador, relativos a 2012, mostram que este é o valor mais alto dos últimos três anos. Em 2010, apenas 28 processos abertos no âmbito das práticas restritivas do comércio diziam respeito às vendas com prejuízo, quase quatro vezes menos.

Do sector do leite à indústria do bacalhau, passando pelo arroz e o pescado, foram várias as denúncias públicas desta prática ao longo de 2012, ano profícuo em promoções e mediáticas apreensões de artigos. Em Janeiro, a ASAE apreendeu 425 mil litros de leite vendidos no Pingo Doce e no Continente, do grupo Sonae (dono do PÚBLICO), por, alegadamente, estarem a ser comercializados com prejuízo, e a seguir fez questão de tornar pública a operação.
Pouco depois, foram detectados indícios noutros artigos, a maioria incluída num folheto promocional do Continente, que oferecia produtos com 75% de desconto em cartão. A AdC chegou a ter uma lista de mais de 70 produtos sob suspeita.
No imediato, este tipo de práticas beneficia o consumidor, ávido de preços baixos. Contudo, especialistas alertam para o facto de esta pressão forçar as lojas concorrentes a baixarem os preços aos produtos. Em consequência, tentarão reduzir a factura a pagar junto dos seus fornecedores.
 "A crise acelera a situação de empresas com dificuldades e, a partir de certa altura, usam todos os meios para tentar vender", diz João Vieira Lopes, presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP). "O aumento das vendas com prejuízo é uma consequência da crise", sublinha.
João Cruz Ribeiro, advogado que tem seguido de perto estes processos, alerta que, "a longo prazo, vender abaixo do preço de custo é prejudicial" e "lesa a concorrência". "Com a redução do preço [ao consumidor final], o que pode acontecer é ser pedido um desconto aos fornecedores a deduzir na próxima factura", afirma.
No feriado do 1.º de Maio, a cadeia de supermercados Pingo Doce abriu os telejornais graças a uma inesperada promoção de 50% de desconto em quase todos os produtos, para quem fizesse compras no valor mínimo de 100 euros. A corrida desenfreada às lojas provocou discussões e confusões entre os clientes, levando mesmo a PSP a intervir. Perante a acusação de estar a vender abaixo do preço de custo e a suportar a megapromoção com a margem dos seus fornecedores, o grupo Jerónimo Martins sustentou que a operação foi gerada pelo investimento da empresa e de alguns dos seus parceiros de negócio.
A campanha ajudou o Pingo Doce a aumentar as vendas em 2,4% entre Abril e Junho, depois de um início de ano com quebras de 0,8% em comparação com o mesmo período de 2011 (tendo em conta igual número de lojas). O grupo liderado por Pedro Soares dos Santos assumiu custos extra de 10 milhões de euros com a promoção do Dia do Trabalhador, encarando-os como investimento para reforçar a marca.
O caso terminou com uma multa de 29.927,88 euros, por cúmulo jurídico (mais 250 euros por custas com o processo). A AdC concluiu que foram vendidos 15 produtos com prejuízo, entre os quais açúcar, arroz, vinho, leite, café, flocos de cereais e fraldas. A empresa contestou a coima em tribunal, recusando-se a pagar. De acordo com a Jerónimo Martins, ainda não há decisão nos tribunais.
À espera das novas regras
Vender abaixo do preço de custo é uma prática "transversal, do retalho alimentar ao não alimentar", diz João Vieira Lopes. Mas acaba por ter mais visibilidade no alimentar, porque "há maior concentração de operadores", ou seja, "chama mais a atenção".
Dos 100 processos abertos em 2012, no âmbito das práticas restritivas do comércio, 97% referem-se a vendas abaixo do preço de custo. A Federação das Indústrias Portuguesas Agro-alimentares (FIPA) prefere não se alongar nas interpretações dos números da Autoridade, mas pede maior rapidez na decisão do regulador. "Mais do que um incremento numérico, o que nos preocupa é que haja uma maior eficácia na actuação e celeridade na resolução dos processos", diz Pedro Queiroz, director-geral.

Por seu lado, a Centromarca, Associação Portuguesa de Empresas de Produtos de Marca, questiona o efeito prático destas denúncias. "Os dados revelam que há uma maior preocupação das autoridades em fiscalizar ou maior preocupação dos fornecedores em apresentar queixa à ASAE. Também mostram que houve um maior aumento das promoções. Mas qual o efeito?", pergunta João Paulo Girbal. O presidente da Centromarca recorda o caso da promoção do 1.º de Maio feita pelo Pingo Doce. "O resultado final deste caso foi uma condenação que não dava sequer para pagar um anúncio de televisão pequeno", ironiza.
João Paulo Girbal acredita que o novo regime das práticas restritivas do comércio, que o Governo está a preparar, vai ter um efeito mais dissuasor, porque aumenta de forma expressiva o valor máximo das coimas: 83 vezes superior ao da lei actual. Passa de 30 mil euros (cúmulo jurídico) para 2,5 milhões de euros, quando as contra-ordenações são praticadas por grandes empresas.
O aumento dos novos casos de vendas com prejuízo "só demonstra que é urgente a revisão da lei", diz o responsável da Centromarca. "A multa deve ser dissuasora e suficientemente importante para que quem estiver a pensar cometer esta infracção não o faça", defende.
Em Janeiro, o Governo apresentou um pedido de autorização legislativa à Assembleia da República para avançar com um novo regime de coimas. Enquanto o documento não sai do Parlamento, a lei em vigor continua a determinar valores mais reduzidos, cenário que, para Girbal, deixa a porta aberta a práticas lesivas do comércio. "Os operadores podem aproveitar para fazer mais promoções em que haja venda com prejuízo até que a lei não saia."
Não foi possível ouvir a Associação Portuguesa das Empresas da Distribuição (APED), que tem vindo a contestar o valor das coimas. A APED, com 121 empresas associadas, já disse que há "um claro exagero" que visa "proteger outros sectores, como o das grandes multinacionais de grande consumo que operam no mercado nacional". Ainda esta semana, Luís Reis, presidente da associação que reúne desde hipermercados a grandes lojas como a Fnac ou o Aki, antecipava mais promoções em 2013. "É uma tendência que se vai manter, porque vivemos um ano difícil, de contracção muito importante no comércio. Sem grandes promoções, será difícil para as famílias portuguesas suportarem a austeridade que lhes está a ser pedida", afirmou.
As vendas no comércio têm descido à medida da austeridade, e a aposta nos descontos foi a forma encontrada pelo sector para atrair clientes às lojas. Nas montras, as promoções parecem ter ganho lugar cativo. E, nas prateleiras dos hiper e supermercados, sucedem-se ofertas e reduções de preços. Com menos dinheiro para gastar, os portugueses encolheram a lista de compras até ao limite e fazem escolhas pressionados pelo preço. A mudança no comportamento dos consumidores reflecte-se nas estatísticas: entre Outubro e Dezembro, o índice de vendas no comércio a retalho do INE caiu 7,2% em comparação com o período homólogo. Para o conjunto do ano de 2012, este índice diminuiu 6,7%.

* É  o chamado dumping para tramar os pequenos produtores/fornecedores das grandes cadeias de distribuição.


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