26/05/2020

CATARINA CALDEIRA MARTINS

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O “novo normal” para 
as Universidades e a perigosa 
vertigem do virtual

Pensar o “novo normal” não pode ser um falso salto para tornar a formação e a investigação num negócio, desigual e assente na exploração, bem como em modelos de gestão que reforçam o autoritarismo e diminuem os direitos ao trabalho e à educação.

O processo de introdução de lógicas neoliberais no Ensino Superior é já longo. A par com a demissão do Estado relativamente ao financiamento, e com a redução da democracia nas Universidades, foi fazendo um caminho que resultou na diminuição da qualidade da formação, a partir de Bolonha, na precarização de um corpo docente cada vez mais reduzido, envelhecido, e explorado através de um sem número de tarefas estéreis e burocratizantes, e na falta de condições para a investigação, com igual desinvestimento do Estado numa carreira sólida para um número cada vez maior de investigadores de já várias gerações, empurrados sucessivamente para a precariedade e vivendo no ou sob a ameaça de desemprego. Ao mesmo tempo, o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior diminuiu drasticamente a democracia interna, permitindo a definição da sua política e estratégias por entidades empresariais e uma lógica de negócio, associada à necessidade de financiamento por captação de receitas ditas “próprias”. Algures foi-se perdendo a razão de ser de uma Universidade: a formação não somente técnica e especializada nos mais diversos campos do saber, mas também de cidadãos e cidadãs cultos e com capacidade de pensamento crítico, de interrogação da sociedade, de debate intelectual, de resolução de problemas sociais através de perspetivas amplas e transversais, muito para além daquilo que permite colocar dinheiro em caixa.

A passagem a um funcionamento não presencial das IES, determinada pela Covid19, tem vindo a ser saudada como um salto para um futuro a que as universidades souberam responder com excelência e que constitui uma oportunidade decisiva e inquestionável para a sempre ambicionada modernização e competitividade. Impulsionada pela pandemia e pelos interesses económicos, esta retórica tem vindo a disseminar-se, à revelia dos factos, das comunidades universitárias, e do que é – e deve continuar a ser – uma Universidade digna desse nome. É um rumo extremamente perigoso que deve ser travado.

Na realidade, o que a covid-19 reforçou foi o caminho indesejável descrito acima. Sob ordens discricionárias emitidas por reitores, sem preparação e sem consulta, sequer, do órgão perante o qual respondem, o Conselho Geral, os/as docentes das universidades confrontaram-se com tarefas para as quais não dispunham nem de meios técnicos, nem de condições materiais, nem de formação especializada (o ensino à distância, para ser sério, requer mais do que o uso ad hoc de uma qualquer plataforma online). Começaram, também, a ser sujeitos a formas inauditas de controlo e de assédio moral, de aumento exponencial de horas de trabalho, de assunção dos custos do teletrabalho, de prolongamento de anos letivos e épocas de exame sob regras de televigilância que, inclusivamente, podem constituir violação de leis relativas à privacidade dos/as estudantes. Estes/as, por sua vez, foram expostos a situações de desigualdade manifesta, por carecerem, igualmente, dos recursos técnicos para acesso à formação à distância, do acesso à bibliografia, a laboratórios, sequer a residências. A esta sobrecarga laboral e emocional acresceu, em ambos os casos, a necessidade de assegurar, em regime de teletrabalho, funções de cuidado de dependentes – crianças em ensino à distância, idosos em grupo de risco – com uma forte dimensão de desigualdade de género. Ao mesmo tempo que procuravam manter a normalidade possível no que diz respeito à formação, a docentes era pedido que “produzissem” artigos, prosseguissem pesquisa, e “inovassem”. De reitores, como o da UC, líamos no jornal, com uma sensação de forte desconforto, o elogio de uma suposta “modernidade” que ainda estamos a viver como exploração e abuso. Sob a máscara deste discurso, é difícil ignorar que estará em curso a conversão da Universidade num business center de investigação a pronto e por encomenda, e numa fábrica de venda de diplomas mal-amanhados num simulacro de formação à distância.

Podemos experimentar todo o tipo de “remendos” para uma situação de pandemia, mas estes nunca constituirão uma Universidade. Pensar o “novo normal” não pode ser um falso salto para tornar a formação e a investigação num negócio, desigual e assente na exploração, bem como em modelos de gestão que reforçam o autoritarismo e diminuem os direitos ao trabalho e à educação. O Pós-Covid tem de trazer o fim do RJIES, a reposição da democracia e da colegialidade na gestão das universidades, a revisão do modelo de financiamento, a contratação, em regime não precário, de um número significativo de docentes, uma sólida carreira de investigação, e condições para o exercício sério de pedagogias modernas, sim, mas consolidadas na formação presencial. Universidade é comunidade – o virtual é um complemento útil, mas nunca pode converter-se na regra. A dispersão da comunidade em teletrabalho é também a dispersão da sua força crítica e reivindicativa. É a dissolução e atomização dos coletivos que pensam a sociedade e que, em crises futuras, já não poderão responder com soluções reais para problemas reais.

 * Professora universitária, dirigente do Bloco/Coimbra

 IN "ESQUERDA"
21/05/20

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