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IN "ESQUERDA"
21/05/20
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O “novo normal” para
as Universidades e a perigosa
vertigem do virtual
Pensar o “novo normal” não pode ser um falso salto para tornar a formação e a investigação num negócio, desigual e assente na exploração, bem como em modelos de gestão que reforçam o autoritarismo e diminuem os direitos ao trabalho e à educação.
O processo de introdução de lógicas neoliberais no Ensino Superior é já
longo. A par com a demissão do Estado relativamente ao financiamento, e
com a redução da democracia nas Universidades, foi fazendo um caminho
que resultou na diminuição da qualidade da formação, a partir de
Bolonha, na precarização de um corpo docente cada vez mais reduzido,
envelhecido, e explorado através de um sem número de tarefas estéreis e
burocratizantes, e na falta de condições para a investigação, com igual
desinvestimento do Estado numa carreira sólida para um número cada vez
maior de investigadores de já várias gerações, empurrados sucessivamente
para a precariedade e vivendo no ou sob a ameaça de desemprego. Ao
mesmo tempo, o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior
diminuiu drasticamente a democracia interna, permitindo a definição da
sua política e estratégias por entidades empresariais e uma lógica de
negócio, associada à necessidade de financiamento por captação de
receitas ditas “próprias”. Algures foi-se perdendo a razão de ser de uma
Universidade: a formação não somente técnica e especializada nos mais
diversos campos do saber, mas também de cidadãos e cidadãs cultos e com
capacidade de pensamento crítico, de interrogação da sociedade, de
debate intelectual, de resolução de problemas sociais através de
perspetivas amplas e transversais, muito para além daquilo que permite
colocar dinheiro em caixa.
A passagem a um funcionamento não presencial das IES, determinada pela
Covid19, tem vindo a ser saudada como um salto para um futuro a que as
universidades souberam responder com excelência e que constitui uma
oportunidade decisiva e inquestionável para a sempre ambicionada
modernização e competitividade. Impulsionada pela pandemia e pelos
interesses económicos, esta retórica tem vindo a disseminar-se, à
revelia dos factos, das comunidades universitárias, e do que é – e deve
continuar a ser – uma Universidade digna desse nome. É um rumo
extremamente perigoso que deve ser travado.
Na realidade, o que a covid-19 reforçou foi o caminho indesejável
descrito acima. Sob ordens discricionárias emitidas por reitores, sem
preparação e sem consulta, sequer, do órgão perante o qual respondem, o
Conselho Geral, os/as docentes das universidades confrontaram-se com
tarefas para as quais não dispunham nem de meios técnicos, nem de
condições materiais, nem de formação especializada (o ensino à
distância, para ser sério, requer mais do que o uso ad hoc de uma
qualquer plataforma online). Começaram, também, a ser sujeitos a formas
inauditas de controlo e de assédio moral, de aumento exponencial de
horas de trabalho, de assunção dos custos do teletrabalho, de
prolongamento de anos letivos e épocas de exame sob regras de
televigilância que, inclusivamente, podem constituir violação de leis
relativas à privacidade dos/as estudantes. Estes/as, por sua vez, foram
expostos a situações de desigualdade manifesta, por carecerem,
igualmente, dos recursos técnicos para acesso à formação à distância, do
acesso à bibliografia, a laboratórios, sequer a residências. A esta
sobrecarga laboral e emocional acresceu, em ambos os casos, a
necessidade de assegurar, em regime de teletrabalho, funções de cuidado
de dependentes – crianças em ensino à distância, idosos em grupo de
risco – com uma forte dimensão de desigualdade de género. Ao mesmo tempo
que procuravam manter a normalidade possível no que diz respeito à
formação, a docentes era pedido que “produzissem” artigos, prosseguissem
pesquisa, e “inovassem”. De reitores, como o da UC, líamos no jornal,
com uma sensação de forte desconforto, o elogio de uma suposta
“modernidade” que ainda estamos a viver como exploração e abuso. Sob a
máscara deste discurso, é difícil ignorar que estará em curso a
conversão da Universidade num business center de investigação a
pronto e por encomenda, e numa fábrica de venda de diplomas
mal-amanhados num simulacro de formação à distância.
Podemos experimentar todo o tipo de “remendos” para uma situação de
pandemia, mas estes nunca constituirão uma Universidade. Pensar o “novo
normal” não pode ser um falso salto para tornar a formação e a
investigação num negócio, desigual e assente na exploração, bem como em
modelos de gestão que reforçam o autoritarismo e diminuem os direitos ao
trabalho e à educação. O Pós-Covid tem de trazer o fim do RJIES, a
reposição da democracia e da colegialidade na gestão das universidades, a
revisão do modelo de financiamento, a contratação, em regime não
precário, de um número significativo de docentes, uma sólida carreira de
investigação, e condições para o exercício sério de pedagogias
modernas, sim, mas consolidadas na formação presencial. Universidade é
comunidade – o virtual é um complemento útil, mas nunca pode
converter-se na regra. A dispersão da comunidade em teletrabalho é
também a dispersão da sua força crítica e reivindicativa. É a dissolução
e atomização dos coletivos que pensam a sociedade e que, em crises
futuras, já não poderão responder com soluções reais para problemas
reais.
* Professora universitária, dirigente do Bloco/Coimbra
IN "ESQUERDA"
21/05/20
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