O caso Skripal e as dúvidas
que ainda subsistem
Na sequência das declarações de Theresa
May, a primeira-ministra britânica, no parlamento, a 12 de março, e de
Boris Johnson, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, sobre o alegado
envenenamento do agente duplo Sergei Skripal e de sua filha Yulia, as
relações político-diplomáticas entre os países ocidentais - nomeadamente
Estados Unidos e Reino Unido - e a Rússia deterioram-se a um ponto
nunca visto desde o fim da guerra-fria, piores mesmo do que nos anos
cinquenta do século passado. Theresa May acusou a Rússia de ser “muito
provavelmente” responsável pelo duplo envenenamento. O assassinato
“teria sido planeado diretamente pelo Kremlin”, ou a “Rússia teria
permitido que o gás tivesse caído em mãos erradas”.
Desconheço
quem possa estar por detrás deste incidente, mas estou particularmente
interessado em saber o que realmente aconteceu. A serem verdadeiras as
acusações feitas à Rússia justifica-se uma resposta firme. Contudo, a
argumentação utilizada pelas autoridades britânicas apresenta algumas
fragilidades não negligenciáveis. Mais de três semanas passadas sobre o
incidente, justificava-se a apresentação de provas inequívocas e
irrefutáveis sobre o envolvimento russo. Continua-se sem conhecer a
identidade do perpetrador, assim como as circunstâncias e o local da
ocorrência. O que se tem sabido é pela comunicação social e a informação
é contraditória. Uns falam num pub, outros num restaurante, parece que
os Skripal teriam sido encontrados moribundos num banco de jardim.
Segundo alguns relatos o polícia que os encontrou teria tido contacto
com o veneno em casa dos Skripals, segundo outros durante a prestação do
auxílio. Seria conveniente conhecer a versão oficial.
Preocupa-me
sobretudo a desastrosa gestão política do acontecimento. A falta de
evidência tem sido acompanhada por um retórica inaceitável, pouco
consentânea com aquilo que são as boas práticas da diplomacia
internacional. O assunto deveria ter sido logo encaminhado no dia 4 de
março para a OPWC, o fórum próprio onde o assunto deveria ser analisado.
A Rússia argumenta com os termos do Artigo IX da CWC, que estipula a
necessidade de se efetuar um primeiro esforço para clarificar e
resolver, através de troca de informações e consultas entre as partes,
qualquer assunto que possa colocar em dúvida o cumprimento das normas em
vigor. Por seu lado, o governo britânico recusou-se a partilhar as
alegadas evidências, assim como as amostras do produto alegadamente
utilizado. A sua publicitação seria um xeque-mate. Contudo, não o fez,
prolongando inutilmente (ou não) uma discussão.
O Reino Unido
optou por politizar o assunto e levá-lo ao Conselho de Segurança da ONU,
no dia 14. Nesse mesmo dia, já com todas as “certezas”, as autoridades
britânicas convidaram a OPWC a levar a cabo uma investigação
independente. Com a crise já instalada, a 19 de março – duas semanas
após o envenenamento - chegaram ao Reino Unido os especialistas da OPCW.
Felizmente que o tema não foi considerado ao abrigo do Artigo V pela
NATO, apesar de ser considerado um ataque a um país da Aliança. Um caso
baseado em hipóteses e não sustentado em evidências foi rapidamente
equiparado a um ato de guerra. Teria sido mais curial esperar pela
finalização das investigações. Acusar primeiro e investigar depois não
parece ser a prática mais adequada.
Esta questão assume contornos
burlescos quando o laboratório científico inglês que fez análises ao
sangue dos Stripal concluiu pela exposição a um “nerve agent or related
compound”… e as amostras indicaram a presença de um “novichok class
nerve agent or closely related agent), não se comprometendo com uma
prova irrefutável. Esperava-se que May tivesse promovido uma audição
parlamentar ao diretor do laboratório para que este fornecesse todas as
evidências e prestasse todos os esclarecimentos, nomeadamente sobre a
origem russa da substância, uma prática comum nas democracia avançadas.
Ao
contrário do que afirmou Theresa May são muitos os possíveis
perpetradores, para além da Rússia, claro está. Naturalmente que a
Rússia não poderá ser excluída da lista dos suspeitos, assim como muitos
outros, nomeadamente os mais de 300 espiões que constavam na lista que
Skripal entregou às autoridades britânicas. Mas a lista de putativos
suspeitos não acaba aqui. São conhecidas as ligações profissionais de
Skripal a Christopher Steele, e ao seu possível envolvimento no
Russiagate. Skripal tinha-se tornado um elemento perigoso que podia
causar danos na comunidade de inteligência americana, no Partido
Democrata e por aí adiante. Existem vários precedentes similares. As
autoridades policiais britânicas, tão zelosas noutras circunstâncias,
revelaram-se particularmente descuidadas na proteção dos Skripal.
Não
podemos deixar de nos interrogar sobre o que é que objetivamente teria a
Rússia a ganhar - a alguns meses da realização do campeonato mundial de
futebol no qual investiu avultadas somas de dinheiro para fosse um
sucesso - em liquidar nesta altura um simples espião que deixara há
muito de constituir um perigo, agravando assim as já tensas relações com
o ocidente? A resposta não é evidente. Putin tem provado ser um ator
racional. Tendo tido a oportunidade para eliminar Skripal enquanto este
permaneceu nos calabouços russos, não o fez, porque o faria agora,
depois de este viver oito anos em Inglaterra? É de facto difícil
descortinar uma razão (lógica).
A argumentação de May apresenta
igualmente fragilidades quando responsabiliza Putin por ter permitido a
fuga do gás. Como se sabe, nos tempos da União Soviética, o novichok era
produzido no Uzbequistão, fábrica essa que foi desmontada com a ajuda
dos Estados Unidos em 1993. Sem salários, a venda de Nnovichok foi uma
forma que na altura muitos funcionários encontraram para sobreviver.
Dizer que se trata de um gás do “tipo desenvolvido pela Rússia”, não
prova que a substância utilizada tenha sido processada na Rússia. Ser
atropelado por um Mercedes não significa que a responsabilidade seja
“muito provavelmente” do governo alemão.
É desconcertante vir
agora o Reino Unido acusar a Rússia de não ter declarado todas as suas
capacidades, não cumprindo as suas responsabilidades no âmbito CWC. A
ser verdade – o que desconheço – sendo esta informação conhecida antes
de 27 de setembro de 2017, a data em que a OPCW declarou a total
destruição do arsenal russo, porque é que o Reino Unido não informou a
OPCW com base no seu próprio intelligence, que tanto quanto sei tinha a
obrigação de o fazer? Seria muito importante ouvir o que os responsáveis
britânicos têm a dizer sobre isto.
Para além das questões de
natureza técnica apontadas – que não se encontram esgotadas – há várias
outros aspetos a relevar. Em primeiro lugar, o rasto de fiabilidade
deixado pelos dois personagens responsáveis pela presente crise. Um,
ainda ontem fazia campanha contra o Brexit e hoje lidera o processo de
separação do Reino Unido da União Europeia, que por sinal lhe está a
correr bastante mal; o outro, liderou a campanha contra o Brexit mas
depois não quis assumir as devidas responsabilidades colocando a
responsabilidade na condução do processo no primeiro. Convém lembrar que
o partido liderado por May não tem, nem nunca teve pruridos em ser
financiado pelos pouco recomendáveis oligarcas russos que se refugiaram
em Londres, transformando a city num enorme tanque de lavagem de
dinheiro russo. De acordo com o London Times e o Daily Telegraph, o
partido da Sr.ª May terá recebido deles donativos no valor de £820,000.
Em
segundo lugar, convém trazer à memória as conclusões do relatório
Chilcot aprovadas pelo parlamento inglês, que chamava à atenção para as
narrativas deliberadamente exageradas apoiadas em intelligence fabricado
à “medida das necessidades” para convencer e receber o apoio das
opiniões públicas. Claramente que esta possibilidade não pode nem deve
ser descartada neste caso. Terão sido as mesmas fontes - igualmente
credíveis - em que se baseiam agora May e Johnson que terão convencido
Blair da irrefutável posse de armas de destruição massiva pelo Iraque.
São conhecidas as consequências desastrosas dessas crenças sem a devida
certificação.
Recordamos ainda o papel desempenhado pelas
chamadas empresas de “Strategic Communications” como a Cambridge
Analytica e a Strategic Communication Laboratories próximas do partido
Conservador e do aparelho militar britânico, contratadas para
influenciar a opinião pública levando-a apoiar o Brexit, algo de que
apenas se conhece a ponta do iceberg. É pois na palavra destas pessoas
que estamos a colocar o nosso futuro coletivo. Fará, provavelmente,
algum sentido parar para pensar e refrear os ânimos.
Encontramo-nos
numa estrada perigosa. Assistimos a algo que se assemelha ao início de
uma guerra. As guerras, leia-se os confrontos militares generalizados,
são sempre precedidos por uma escalada que passa pela subida de tom na
retórica, a demonização do oponente, o reforço dos dispositivos
militares e a conquista da opinião pública para apoiar ações mais
assertivas contra o oponente.
Depois é necessário criar um
acontecimento, um pretexto que não tem necessariamente de ser causado
pelo oponente e que é normalmente provocado por quem pensa que vai
beneficiar com o resultado da guerra. Sabe-se hoje quem montou a
armadilha que levou à guerra do Vietnam, à guerra espanhola-americana e
muitas outras mais recentemente. Por isso, convinha que prevalecesse o
bom senso.
Começa a ser claro que o campeonato mundial de futebol
será um palco desta luta. Mas enquanto for só isso… a histeria
russofóbica faz parte da operação de moldagem das opiniões públicas,
preparando-as para o confronto. Com o clima criado poderá nem ser
necessário conceber um pretexto. Bastará um imprevisto, um erro de
cálculo para nos levar para uma situação sem retorno, fazendo com que a
crise político-militar se transforme numa confrontação militar direta.
Essa possibilidade afigura-se-nos muito elevada. A nova postura nuclear
dos Estados Unidos e a crença de que se consegue manter uma guerra ao
nível nuclear tático, sem evoluir para o patamar estratégico e para a
destruição total são mais alguns ingredientes que nos devem fazer
refletir. A presente crise – real ou fictícia – enquadra-se
perfeitamente no modelo. O que está mesmo a fazer falta é testar os
efeitos das novas armas hipersónicas.
*Major General das Forças Armadas portuguesas
IN "EXPRESSO"
29/03/18
.
Sem comentários:
Enviar um comentário