27/05/2017

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HOJE NO
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"

Yuval Harari:
 "Não sabemos o que ensinar aos jovens pela primeira vez na História"

Obama, Bill Gates e Mark Zuckerberg ficaram fascinados com o livro 'Sapiens' de Yuval Noah Harari. O historiador dá a sua primeira entrevista para Portugal aquando do seu novo trabalho: Homo Deus

O livro anterior de Yuval Harari, Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, foi um sucesso mundial, tanto assim que o então Presidente Barack Obama disse que era o seu livro de mesa de cabeceira, Bill Gates repetiu, Mark Zuckerberg colocou-o no seu clube de leitura online e o Youtube encheu-se de vídeos das suas aulas. Em Portugal, o historiador israelita não passou despercebido e alguns milhares já leram as quatro edições do antecessor de Homo Deus - História Breve do Amanhã (editora Elsinore), o seu mais recente trabalho de investigação lançado seis anos após o primeiro.

Em quase 500 páginas, o professor do departamento de História da Universidade Hebraica de Jerusalém faz uma análise da evolução do Homem que se segue e questiona quais poderão ser os passos de gigante dos habitantes da Terra. Uma antevisão pouco agradável, onde a Inteligência Artificial e a biogenética destituirão em breve as regras que gerem as sociedades atuais. Nesta entrevista ao DN, a primeira para Portugal, Yuval Harari explica como os netos dos nossos netos só serão em parte humanos, que será o algoritmo a decidir os empréstimos de um banco, que as reivindicações dos excluídos serão ignoradas e que o que hoje se ensina nas escolas e universidades de pouco servirá dentro de no máximo duas décadas. Não pretende que seja uma perceção catastrófica, antes o resultado da evolução da tecnologia ao nosso dispor no século XXI e que será impossível de travar. Harari tornou-se uma celebridade mundial, gay, vive com o marido numa comunidade israelita, vegan e recusa-se a usar um smarthphone.
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Olho para o seu livro e imagino o autor como um drone dotado de inteligência artificial a sobrevoar o planeta Terra. Revê-se nesta imagem?
Até certo ponto. Eu tento ser realmente como um drone que voa a grande altitude e observa tudo o que acontece na Terra sem tomar partidos. No entanto, ao contrário de um drone ou de uma inteligência artificial, eu não me foco apenas nos acontecimentos materiais. Tento compreender como as pessoas se sentem e dou um lugar central no meu livro às questões éticas e filosóficas. Não vale a pena escrever História se nos esquecermos da dimensão ética.

Começa o livro com uma grande pergunta: "Estamos a controlar a fome, as epidemias e a guerra. O que irá substituí-las?" Qual é o seu prognóstico?
No séc. XXI a principal ambição humana não será meramente o controlo da fome, das epidemias e da guerra, mas sim a de transformar os humanos em deuses. E digo isto no sentido literal. Os seres humanos esforçar-se-ão por adquirir capacidades que foram inicialmente pensadas como capacidades divinas. Em particular, a capacidade de manipular e criar vida. Assim como na Bíblia Deus criou animais, plantas e seres humanos de acordo com os seus desejos, também no séc. XXI iremos provavelmente aprender como projetar e fabricar animais e plantas e, até, seres humanos segundo os nosso desejos. Iremos usar a engenharia genética para criar novos tipos de seres orgânicos; usaremos interfaces diretas cérebro-computador com o objetivo de criar ciborgues (seres que combinam partes orgânicas com partes inorgânicas); e podemos até conseguir criar seres completamente inorgânicos. Os principais produtos da economia do séc. XXI não serão têxteis, veículos e armas, mas sim corpos, cérebros e mentes. Foi por isso que dei ao livro o título de Homo Deus (homem-deus).

Ao comentar o estado atual da humanidade diz: "Vejamos o que o dia de hoje nos reserva". Esta é uma questão para o mundo inteiro ou apenas para os menos afortunados?
Ainda há milhares de milhões de pessoas pobres no mundo que sofrem de desnutrição e doenças, mas as fomes em massa estão a tornar-se raras. No passado, de tantos em tantos anos havia secas ou inundações, ou outro tipo qualquer de catástrofe natural, a produção de alimentos caía a pique e milhões de pessoas morriam à fome. Atualmente, a humanidade produz tanta comida e consegue transportá-la tão rapidamente e de forma tão barata que os desastres naturais nunca resultam, por si próprios, em fome em massa. Já não existe fome natural no mundo, há apenas fome de origem política. Se as pessoas ainda morrem de fome na Síria, no Sudão ou na Coreia do Norte é apenas porque alguns governos assim o desejam.

Vejamos a China, por exemplo. Há poucas décadas a China era ainda um paradigma de escassez de alimentos. Dezenas de milhões de chineses morreram de fome durante o Grande Salto em Frente e os especialistas previam rotineiramente que o problema só iria piorar. Em 1974 teve lugar em Roma a primeira Conferência Mundial da Alimentação e os delegados foram presentados com cenários apocalíticos. Foi-lhes dito que a China nunca conseguiria alimentar os seus mil milhões de pessoas e que o país mais populoso do mundo estava a caminho da catástrofe. Na verdade estava a caminho do maior milagre económico da história. Desde 1974 centenas de milhões de chineses saíram da pobreza e apesar de haver ainda centenas de milhões que sofrem muitíssimo de privações e desnutrição, a China está pela primeira vez nos seus registos históricos livre da fome.

De facto, na maioria dos países, hoje, comer demais tornou-se um problema muito pior do que a fome. No século XVIII, Maria Antonieta supostamente aconselhou as massas famintas a que, se ficassem sem pão, comessem bolos. Hoje, os pobres seguem este conselho à letra. Enquanto os habitantes ricos de Beverly Hills comem salada de alface e tofu cozido a vapor com quinoa, nos bairros da lata e guetos os pobres engolem bolos industriais, pacotes de aperitivos salgados, hambúrgueres e pizzas. Em 2014, mais de 2100 milhões de pessoas tinham excesso de peso, contra 850 milhões que sofriam de desnutrição. Calcula-se que em 2030 metade da humanidade sofra de excesso de peso. Em 2010, a fome e a desnutrição combinadas mataram cerca de um milhão de pessoas, enquanto a obesidade matou três milhões.

Afirma que as guerras estão a diminuir. Quando vê o Presidente Trump atirar uma super-bomba sobre o Afeganistão sente vontade de alterar o texto do livro?
Eu não disse que as guerras iriam inevitavelmente desaparecer. O que eu disse foi que nós transformámos as guerras de uma catástrofe inevitável além do controlo humano numa ameaça gerível. No passado, os seres humanos pensavam que as guerras eram uma parte natural do mundo e somente Deus poderia trazer a paz à Terra. Mas ao longo das últimas décadas, os seres humanos descobriram que têm o poder de trazer a paz à Terra por si mesmos, se tomarem as decisões certas.

Ainda há guerras em algumas partes do mundo, eu vivo em Israel por isso sei muito bem disso. Mas grandes partes do mundo estão completamente livres da guerra e muitos estados deixaram de usar a guerra como um instrumento padrão para promover os seus interesses. Nas sociedades agrícolas antigas, cerca de 15% de todas as mortes eram causadas pela violência humana. Hoje, em todo o mundo, as mortes causadas pela violência humana são menos de 1,5%. De facto, o número de suicídios é hoje maior do que o número de mortes violentas! São maiores as hipóteses de se morrer por suicídio do que de se ser morto por um qualquer soldado inimigo, um terrorista ou um criminoso. Da mesma forma, o número de pessoas que morrem por obesidade e doenças relacionadas é muito mais elevado do que o número de pessoas mortas por violência humana. O açúcar é hoje mais perigoso do que a pólvora.

O que originou esta nova era de paz? Existem duas causas principais. Em primeiro lugar, as armas nucleares transformaram a guerra entre superpotências em suicídio coletivo. Assim, as superpotências tiveram que mudar completamente o sistema internacional e encontrar maneiras de resolver conflitos sem grandes guerras. Em segundo lugar, as mudanças económicas transformaram o conhecimento no principal ativo económico. Anteriormente, a riqueza era principalmente riqueza material: campos de trigo, minas de ouro, escravos, gado. Isso encorajava a guerra, porque era relativamente fácil conquistar riqueza material através da guerra. Hoje, a riqueza está cada vez mais baseada no conhecimento. E não se pode conquistar o conhecimento através da guerra. Não se pode, por exemplo, conquistar a riqueza de Silicon Valley através da guerra, porque não há minas de silício no Vale do Silício - a riqueza vem do conhecimento dos engenheiros e técnicos. Consequentemente, hoje, a maioria das guerras está restrita àquelas partes do mundo - como o Médio Oriente - onde a riqueza é a riqueza material antiquada (principalmente campos de petróleo).

Foi fácil integrar a afirmação constante do terrorismo neste seu exame?
O terrorismo é em grande parte teatro. Os terroristas encenam um espetáculo de violência aterrorizador que domina a nossa imaginação e nos faz sentir como se estivéssemos a resvalar de novo para o caos medieval. Consequentemente os estados sentem-se muitas vezes obrigados a reagir ao teatro do terrorismo com um espetáculo de segurança, orquestrando enormes exibições de força, como a perseguição de populações inteiras ou a invasão de países estrangeiros. Na maior parte dos casos, essa reação exagerada ao terrorismo representa uma ameaça muito maior à nossa segurança do que os próprios terroristas.

Os terroristas são como uma mosca que tenta destruir uma loja de porcelanas. A mosca é tão fraca que não consegue mover nem uma chávena de chá. Assim, encontra um touro, entra para dentro do seu ouvido e começa a zumbir. O touro fica louco de medo e fúria e destrói a loja de porcelanas. Foi o que aconteceu no Médio Oriente na última década. Os fundamentalistas islâmicos nunca conseguiriam ter derrubado Saddam Hussein sozinhos. Em vez disso, eles enfureceram os EUA com os atentados de 11 de setembro e os EUA destruíram a loja de porcelanas do Médio Oriente por eles. Agora eles florescem nos destroços. Portanto, na verdade, o sucesso ou o fracasso do terrorismo dependem de nós. Se permitirmos que os terroristas dominem a nossa imaginação e, depois, reagirmos exageradamente aos nossos próprios medos, o terrorismo terá êxito. Se libertarmos a nossa imaginação dos terroristas e reagirmos de forma equilibrada e calma, o terrorismo fracassará.

No subcapítulo O Direito à Felicidade considera que este é o segundo grande projeto na agenda da humanidade. Mas, como dizia Epicuro, esta busca não continua a conduzir à infelicidade?
Sim, até agora a busca da humanidade pela felicidade não foi muito bem-sucedida. Nós somos hoje muito mais poderosos do que alguma vez fomos e a nossa vida é certamente mais confortável do que no passado, mas é duvidoso que sejamos muito mais felizes do que os nossos antepassados. Os americanos médios têm um carro, um telemóvel, um frigorífico cheio de comida e um armário cheio de medicamentos, coisas com que os seus antepassados dificilmente poderiam sonhar. No entanto, os americanos estão tão irritados e insatisfeitos com a sua situação, que elegeram Donald Trump como seu presidente. Aparentemente, não é fácil traduzir o poder em felicidade.

Uma explicação é que a felicidade depende menos de condições objetivas e mais das nossas próprias expectativas. As expectativas, no entanto, tendem a adaptar-se às condições. Quando as coisas melhoram, as expectativas aumentam e, consequentemente, mesmo melhorias drásticas nas condições podem deixar-nos tão insatisfeitos como antes.

Eu valorizo muito Marx. Até certo ponto, todos nós somos marxistas hoje. Podemos não aceitar o programa político de Marx, mas mesmo os capitalistas mais radicais analisam a história e a política usando o pensamento marxista. Por exemplo, quando tentamos entender a ascensão de Donald Trump, geralmente pensamos que as mudanças económicas, como a crescente desigualdade entre a classe operária americana e a classe alta, levam a convulsões políticas. Essa é uma análise marxista.

No entanto, no séc. XXI as teorias marxistas estão a perder relevância. O marxismo assume que a classe trabalhadora é vital para a economia e os pensadores marxistas tentaram ensinar ao proletariado como traduzir o seu imenso poder económico em força política. Esses ensinamentos podem tornar-se completamente irrelevantes no séc. XXI, pois a IA e os robôs substituem os seres humanos em mais e mais empregos e as massas perdem o seu valor económico. Na verdade, pode haver quem argumente que o brexit e Trump já demonstram uma trajetória oposta à que Marx imaginava. Em 2016, os britânicos e os americanos que perderam a sua utilidade económica, mas que ainda conservam o poder político, usaram esse poder para se revoltarem antes que seja tarde demais. Eles não se revoltam contra uma elite económica que os explora, mas contra uma elite económica que já não precisa deles.

Preocupa-o a certeza de que nos vamos confrontar em breve com uma raça de super-homens, o seu Homo Deus?
Sim, existe o perigo de a humanidade se dividir em castas biológicas. À medida que a biotecnologia se for desenvolvendo será possível prolongar o tempo da vida humana e melhorar as capacidades humanas, mas os novos tratamentos maravilha podem ser caros e podem não estar disponíveis gratuitamente para todos os milhares de milhões de seres humanos. Assim, a sociedade humana no séc. XXI pode ser a mais desigual da História. Pela primeira vez na História, a desigualdade económica será traduzida em desigualdade biológica. Pela primeira vez na História, as classes superiores não serão apenas mais ricas do que o resto da humanidade, mas também viverão muito mais tempo e terão muito mais talento.

A ascensão da inteligência artificial pode exacerbar este problema. Dentro de algumas décadas, a IA pode tornar a maioria de seres humanos inúteis. Estamos agora a desenvolver software para computadores e IA que superam os seres humanos em cada vez mais tarefas, desde conduzir carros até diagnosticar doenças. Como resultado, os especialistas calculam que dentro de algumas décadas, não serão só os empregos de taxistas e médicos, mas cerca de 50% de todos os postos de trabalho nas economias avançadas serão ocupados por computadores.

Podem aparecer muitos novos tipos de empregos, mas isso não irá necessariamente resolver o problema. Os seres humanos têm basicamente apenas dois tipos de capacidades - físicas e cognitivas - e se os computadores nos superarem em ambas, eles podem superar-nos nos novos empregos tal como o fizeram nos antigos. Então, qual será a utilidade de seres humanos nesse mundo? O que faremos com milhares de milhões de seres humanos economicamente inúteis? Não sabemos. Não temos qualquer modelo económico para tal situação. Esta pode ser a maior questão económica e política do século XXI.
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Além disso, à medida que os algoritmos expulsam os seres humanos do mercado de trabalho, a riqueza pode concentrar-se nas mãos da pequena elite que possui os algoritmos todo-poderosos, criando desigualdades sociais e políticas sem precedentes. Hoje, milhões de motoristas de táxi, de autocarros e de camiões têm um peso económico e político significativo, cada um comandando uma pequena parcela do mercado de transportes. Se o governo faz alguma coisa de que não gostem, eles podem sindicalizar-se e entrar em greve. No futuro, todo esse poder económico e político pode ser monopolizado por alguns bilionários que possuem as empresas que detêm os algoritmos que dirigem todos os veículos.

O Homo sapiens foi apenas mais uma etapa da evolução do Homem e deixou de ser a referência?
Nós somos provavelmente uma das últimas gerações de Homo sapiens. Ainda teremos netos, mas não tenho muita certeza de que os nossos netos terão netos. Pelo menos não humanos. No próximo século ou dois, os seres humanos ou se destroem a eles mesmos ou evoluem para algo completamente diferente. Algo que será mais diferente de nós do que nós somos diferentes dos neandertais ou dos chimpanzés.

[citacao O algoritmo discrimina-o não porque você é mulher ou homossexual ou negro, mas porque você é você. Há algo específico sobre si de que o algoritmo não gosta]

Elege o algoritmo como um fator de discriminação. Como podem os mais fracos defenderem-se?
Ao reunir dados e poder de computação suficientes, empresas e governos poderão criar rapidamente algoritmos que me conhecem melhor do que eu próprio, e então a autoridade deslocar-se-á de mim para o algoritmo. O algoritmo poderá entender os meus desejos, prever as minhas decisões e fazer melhores escolhas em meu nome. Tais algoritmos contêm um grande potencial, mas também um grande perigo. À medida que os algoritmos nos começam a conhecer tão bem, os governos ditatoriais poderão obter um controlo absoluto sobre os seus cidadãos, ainda mais do que na Alemanha nazi, e a resistência a tais ditaduras poderá ser totalmente impossível. Mesmo em países democráticos, as pessoas podem tornar-se vítimas de novos tipos de opressão e discriminação. Hoje em dia, cada vez mais bancos, empresas e instituições estão a usar algoritmos para analisar dados e tomar decisões sobre nós. Quando pedimos um empréstimo a um banco é mais provável que o nosso pedido seja processado por um algoritmo de que por um ser humano. O algoritmo analisa muitos dados sobre nós e estatísticas sobre milhões de outras pessoas, e decide se somos suficientemente confiáveis para nos conceder um empréstimo. Muitas vezes, o algoritmo faz um trabalho melhor do que um banqueiro humano. Mas o problema é que, se o algoritmo discriminar algumas pessoas injustamente, é difícil saber isso. Se o banco se recusar a dar-nos um empréstimo e perguntarmos "porque não?", o banco responde "o algoritmo disse que não". Se perguntarmos "por que motivo o algoritmo disse que não?", o banco responde, "Nós não sabemos. Nenhum ser humano entende este algoritmo, porque é baseado na aprendizagem avançada da máquina. Mas nós confiamos no nosso algoritmo, por isso não lhe concederemos um empréstimo".

No passado, as pessoas discriminavam grupos inteiros como mulheres, homossexuais e negros. Assim, as mulheres, os homossexuais ou os negros, podiam organizar-se e protestar contra a sua discriminação coletiva. Mas agora o algoritmo pode discriminá-lo a si, e você não faz ideia da razão. Talvez o algoritmo tenha encontrado alguma coisa no seu ADN ou na sua história pessoal que não lhe agrada. O algoritmo discrimina-o não porque você é mulher ou homossexual ou negro, mas porque você é você. Há algo específico sobre si de que o algoritmo não gosta. Você não sabe o que é, e mesmo que soubesse, não se pode organizar com outras pessoas para protestar, porque não há outras pessoas. É apenas você. Em vez da discriminação coletiva como no século XX, talvez no século XXI tenhamos um grande problema de discriminação individual.

Quando aponta o Dataísmo como a próxima religião não está a ir longe de mais? Falando de religião, esta tem um prazo de validade?
Primeiro, devemos entender o que é a religião. A religião não é a crença em deuses. Em vez disso, a religião é qualquer sistema de normas e valores humanos que se baseia na crença em leis sobre-humanas. A religião diz-nos que devemos obedecer a certas leis que não foram inventadas pelos seres humanos e que os seres humanos não podem mudar à sua vontade. Algumas religiões, como o islão, o cristianismo e o hinduísmo, acreditam que essas leis sobre-humanas foram criadas pelos deuses. Outras religiões, como o budismo, o capitalismo e o nazismo, acreditam que essas leis sobre-humanas são leis naturais. Assim, os budistas acreditam nas leis naturais do carma, os nazis argumentaram que a sua ideologia refletia as leis da seleção natural, e os capitalistas acreditam que seguem as leis naturais da economia.
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Não importa se acreditam em leis divinas ou em leis naturais, todas as religiões têm exatamente a mesma função: dar legitimidade às normas e valores humanos e dar estabilidade às instituições humanas, como estados e empresas. Sem algum tipo de religião é simplesmente impossível manter a ordem social. Durante a era moderna, as religiões que acreditam nas leis divinas entraram em declínio. Mas as religiões que acreditam nas leis naturais tornaram-se cada vez mais poderosas. No futuro, é provável que se tornem mais poderosos ainda. Silicon Valley, por exemplo, é hoje uma incubadora de novas tecno-religiões. Eles prometem todos os velhos prémios religiosos - felicidade, paz, prosperidade e vida eterna - mas aqui na terra com a ajuda da tecnologia e não depois da morte com a ajuda de seres sobrenaturais.

O seu livro anterior foi amplamente reconhecido. Alguém aprendeu a lição?
Não estou certo de que o objetivo do estudo da História seja aprender lições práticas. Na minha opinião, devemos estudar a História não para aprender com o passado, mas para nos libertarmos dele. Cada um de nós nasce num mundo particular, governado por um sistema particular de normas e valores, e uma determinada ordem económica e política. Como nascemos nele, tomamos a realidade circundante como natural e inevitável, e tendemos a pensar que a maneira como as pessoas hoje vivem as suas vidas é a única possível. Raramente nos damos conta de que o mundo que conhecemos é o resultado acidental de acontecimentos históricos aleatórios que condicionam não só a nossa tecnologia, política e economia, mas até mesmo a maneira como pensamos e sonhamos. É assim que o passado nos agarra pela parte de trás da cabeça, e vira o nosso olhar para um único futuro possível. Sentimos o aperto do passado desde que nascemos, por isso nem sequer nos apercebemos dele. O estudo da História visa reduzir esse aperto e permitir-nos virar a nossa cabeça mais livremente, pensar de maneira diferente e ver muitos mais futuros possíveis.

Se não conhecermos a História, facilmente confundimos os seus acidentes com a nossa verdadeira essência. Por exemplo, pensamos em nós mesmos como pertencendo a uma determinada nação, como Israel ou a Coreia; acreditamos numa certa religião; vemo-nos como indivíduos; acreditamos que temos certos direitos naturais. Então, quando me pergunto "quem sou eu?" posso responder que "sou israelita, sou judeu e sou um indivíduo que tem direitos inalienáveis ??à vida, à liberdade e à busca da felicidade".

No entanto, o nacionalismo, o individualismo, os direitos humanos e a maioria das religiões são desenvolvimentos recentes. Antes do séc. XVIII, o nacionalismo era uma força bastante fraca, e a maioria das nações de hoje não tem mais de um século de existência. O indivíduo foi criado pelo estado e pelo mercado modernos, na sua luta para quebrar o poder das famílias e comunidades tradicionais. Os direitos humanos são uma história inventada nos últimos três séculos, que não tem base na biologia. Não há direitos inscritos no nosso ADN. A maioria das religiões que conhecemos hoje nasceu apenas nos últimos dois ou três mil anos e sofreu profundas mudanças nos últimos séculos. O judaísmo ou o cristianismo de hoje são muito diferentes do que eram há 2000 anos. Não são verdades eternas, mas criações humanas. Algumas dessas criações podem ter sido muito benéficas, é claro, mas para conhecer a verdade sobre nós mesmos precisamos ir além de todas essas criações humanas. É por isso que a História me interessa tanto. Eu quero conhecer a História, para poder ir além dela e entender a verdade que não é o resultado de acontecimentos históricos aleatórios.

É sempre referido como um historiador israelita. Porquê sempre a qualificação da nacionalidade?
Eu não me classifico como "um historiador israelita". Eu não acho que a nacionalidade seja assim tão importante. Acho mesmo que os meus antecedentes judaicos têm muito menos influência na minha visão da História do que se poderia esperar. Eu sou judeu por etnia, mas não na minha religião e na minha visão do mundo. Sou muito mais influenciado por Buda e Darwin do que pela Bíblia. É claro que as minhas experiências como israelita moldaram a minha vida e a minha compreensão do mundo até certo ponto. O mundo parece diferente visto de Jerusalém, de Nova Iorque ou de Pequim, e se eu tivesse crescido em Nova Iorque ou Pequim, provavelmente teria escrito um livro diferente. Em particular, porque vivo no Médio Oriente, com todos os conflitos nacionalistas e religiosos, estou muito consciente do imenso poder das histórias imaginárias para controlar as nossas vidas. As pessoas estão a matar-se por todo o lado por puras ficções. É por isso que é tão importante para mim distinguir a realidade da ficção.

"Homo Deus" resulta de uma investigação complexa. Foi confrontado com caminhos sem saída?
O meu objetivo principal ao escrever Homo Deus não era profetizar o futuro, mas sim questionar o nosso futuro e explorar várias possibilidades. O livro foca-se na interação entre tecnologia, política, sociedade e religião. O que acontecerá com a política quando os algoritmos Big Data conhecerem os nossos desejos e opiniões melhor do que nós próprios os conhecemos? O que acontecerá com o mercado de trabalho quando os computadores superarem os seres humanos em cada vez mais tarefas, e a inteligência artificial substituir taxistas, médicos, professores e polícias? O que faremos com milhares de milhões de pessoas economicamente inúteis? Como irão lidar religiões como o cristianismo e o islão com a engenharia genética e o potencial de criar super-humanos e superar a velhice e a morte? Irá Silicon Valley acabar por produzir novas religiões, em vez de apenas novos gadgets?

Ao tentar responder a essas perguntas encontrei obviamente muitos becos sem saída. Ninguém sabe realmente como será o mundo dentro de 30 ou 60 anos. Na verdade, acho que a nossa capacidade de entender o mundo é hoje menor do que nunca. No passado, o conhecimento humano aumentava lentamente e a tecnologia demorava tempo a ser desenvolvida, de modo que a política e a economia também mudavam a um ritmo lento. Hoje, o nosso conhecimento está a aumentar a uma velocidade vertiginosa e, teoricamente, deveríamos entender o mundo cada vez melhor. Mas está a acontecer precisamente o contrário. Os nossos conhecimentos recém-adquiridos levam a mudanças económicas, sociais e políticas mais rápidas. Na tentativa de entender o que está a acontecer, aceleramos a acumulação de conhecimento, o que leva apenas a agitações mais rápidas e maiores. Consequentemente, estamos cada vez menos aptos a dar sentido ao presente ou a prever o futuro. Ninguém sabe realmente o que está a acontecer hoje no mundo, ou onde estaremos no futuro.

Há mil anos, em 1017, havia muitas coisas que as pessoas não sabiam sobre o futuro, mas podiam ter certeza sobre as características básicas da sociedade humana. Se você vivesse na Europa em 1017 sabia que em 1050 os Vikings poderiam invadir novamente, as dinastias poderiam cair e as pestes ou terramotos poderiam matar milhões. No entanto, era claro para si que mesmo em 1050 a maioria dos europeus ainda trabalharia na agricultura, os homens ainda dominariam as mulheres, a expectativa de vida seria de cerca de 40 anos e o corpo humano seria exatamente o mesmo. Hoje, pelo contrário, não fazemos ideia de como a Europa ou o resto do mundo vai ser em 2050. Não sabemos o que as pessoas farão como trabalho, não sabemos como serão as relações de género, as pessoas poderão viver muito mais do que hoje e o próprio corpo humano pode sofrer uma revolução sem precedentes graças à bioengenharia e a interfaces diretas entre cérebro e computador.

Consequentemente, pela primeira vez na história, não fazemos ideia do que ensinar às crianças na escola ou aos estudantes na faculdade. Em 1017, os pais ensinaram aos seus filhos como plantar trigo, como tecer lã, ou como ler a Bíblia e era óbvio que essas capacidades ainda seriam necessárias em 1050. Pelo contrário, a maior parte do que as crianças aprendem hoje na escola será irrelevante em 2050.

Sabemos que tecnologias como a IA e a bioengenharia mudarão o mundo, mas não temos certeza de como o farão, porque a tecnologia nunca é determinista. Podemos usar os mesmos avanços tecnológicos para criar tipos muito diferentes de sociedades e situações. Por exemplo, no séc. XX, as pessoas podiam usar a tecnologia da Revolução Industrial - comboios, eletricidade, rádio, telefone - para criar ditaduras comunistas, regimes fascistas ou democracias liberais. Basta pensar na Coreia do Sul e na Coreia do Norte: os dois países tiveram acesso exatamente à mesma tecnologia, mas eles optaram por empregá-la de maneiras muito diferentes.

No séc. XXI, a ascensão da IA ??e da biotecnologia irá certamente transformar o mundo, mas isso não implica um resultado determinista único. Podemos usá-las para criar tipos muito diferentes de sociedades. Como usá-las sabiamente é a questão mais importante que a humanidade enfrenta atualmente. É muito mais importante do que a crise económica mundial, as guerras no Médio Oriente ou a crise dos refugiados na Europa. O futuro, não só da humanidade, mas provavelmente da própria vida, depende de como escolhemos usar a IA e a biotecnologia.

Para dar um exemplo, consideremos o que a biotecnologia pode significar para a criação de animais. Atualmente, os seres humanos tratam os animais de criação, como vacas, porcos e galinhas, como se fossem apenas máquinas para a produção de carne, leite e ovos. Nós infligimos um sofrimento tremendo a biliões de seres sensíveis, que conseguem sentir dor, medo e solidão. Os avanços na biotecnologia dão-nos agora uma escolha. Por um lado, podemos usar a biotecnologia para criar vacas, porcos e galinhas que crescem mais rapidamente e produzem mais carne, sem pensar no sofrimento que infligimos a esses animais. Por outro lado, poderíamos usar a biotecnologia para criar o que é conhecido como "agricultura celular" ou "carne limpa" - carne que é produzida em laboratórios a partir de células animais, sem necessidade de criar e abater criaturas inteiras. Se quisermos um bife, poderemos limitar-nos a produzir um bife, em vez de criar e abater uma vaca inteira. Isso não é ficção científica. O primeiro "hambúrguer limpo" foi produzido em 2013. É verdade que custou 330 000 dólares, mas, hoje, produzir um hambúrguer desses custa apenas 11 dólares, e dentro de alguns anos é provável que custe menos do que um hambúrguer de "carne abatida". Com a investigação e o investimento certos, dentro de uma década ou duas poderíamos produzir carne limpa em escala industrial, que será mais barata, mais ecológica e mais ética do que criar vacas. A escolha depende de nós.

Homo Deus - História Breve do Amanhã
Yuval Noah Harari
Editora Elsinore
480 páginas
22 euros

* Uma entrevista para ler duas vezes, pelo menos.

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