Ensaio sobre
a cegueira dos media
A imprensa, os media americanos, da Europa e do mundo, não quiseram acreditar na vitória de Trump.
2h45 de quarta-feira, 9 de novembro de 2016 – ainda 8 de novembro no
continente americano, que fica para a história como o dia em que Donald
Trump foi eleito 45.º Presidente dos Estados Unidos. Em direto da sede
de campanha de Hillary Clinton, em Nova Iorque, um jornalista sénior de
um dos canais de televisão portugueses de referência dá conta do
«ambiente de confiança» reinante e do «entusiasmo dos democratas» na
eleição da primeira mulher Presidente da maior democracia do mundo «à
medida que vão sendo conhecidos os primeiros resultados». A bem mais
jovem pivot, no estúdio em Lisboa, certamente com sinais da régie em
polvorosa, procura emendar e sublinha que o «ambiente entre os
democratas é de preocupação»… tal como o enviado especial a Nova Iorque
acabara de «relatar». Não, não acabara.
Num canal concorrente, minutos antes, já Rui Oliveira e Costa – bem
conhecedor do histórico eleitoral dos americanos – tinha reticências em
assumir a previsão de vitória de Trump, que começava a ser evidente para
ele, mas contrariava todas as sondagens e todos os meios de comunicação
e o seu próprio prognóstico. O jornalista-moderador informava-o de que o
barómetro do Washington Post, que ao início da noite dava 80% de
probabilidades de vitória a Hillary Clinton, já baixara para os 60%.
«60%?» – interrogava-se, e bem, Oliveira e Costa – «eu diria mais 50%».
Ainda assim, custava-lhe a reconhecer o que me atrevo a dizer que já
estava a prever, uma vez que os resultados na Virginia já davam uma
clara tendência para Trump e na Florida também. Oliveira e Costa sabia
que os chamados ‘estados swing’ são determinantes, mas mesmo assim teve
receio de retirar a óbvia conclusão. Apenas e só porque politicamente
incorreta.
A Newsweek já tinha pronta para imprimir uma capa com o título Madam
President sobre a foto de Hillary. Assim quase igual à que, por cá, a
revista do Expresso, oito dias antes, levara à estampa titulando Yes she
can e onde podia ler-se: «Hillary Clinton está prestes a fazer história
quando a 8 de novembro se tornar a primeira mulher eleita Presidente
dos Estados Unidos da América. Depois da campanha mais tóxica que alguma
vez teve lugar na maior democracia do mundo. Por Clara Ferreira Alves».
Num painel de comentadores em estúdio – que também contava com
Pacheco Pereira, por Skype e a partir dos EUA, a dizer que «Trump já
ganhou mesmo perdendo as eleições» –, comentavam-se em tom jocoso e
ridicularizador as primeiras palavras de Trump na noite eleitoral
segundo as quais podia dar-se por encerrado o processo porque ele já
ganhara. Como se ridicularizava o facto de Trump afirmar que não iria
aceitar os resultados se não lhe dessem a vitória: para o politicamente
correto, mais um exemplo do ‘trogloditismo’ de quem não sabe o que é a
democracia.
Noutro canal exclusivamente de notícias, passava-se pela enésima vez as
imagens da saída de Pedro Dias, algemado, de Arouca, num Toyota
cinzento escuro, e a chegada à Guarda, num Skoda preto. Os comentadores
discutiam qual a medida de coação que viria a ser aplicada ao homem que
terá cometido dois homicídios, que esteve 28 dias a monte, que manteve
em alarme as populações das beiras e que diz não se ter entregue antes
por temer ser executado por agentes da GNR (se neste caso não fosse
determinada a prisão preventiva, não seria em mais nenhum, mas enfim).
Zapping e voltemos a Trump.
Ao final da manhã de 9 de novembro, um norte-americano de jeans e
t-shirt cool, apresentado como «empresário multimilionário», levanta-se
da sua cadeira na Web Summit de Lisboa indignando-se contra «os imbecis
que começam a ocupar cargos de liderança» no mundo e apela à indignação
dos presentes contra Trump. «Levantem-se, f…», grita e repete,
esbracejando (numa linguagem e numa atitude mais próprias de Trump do
que de Obama ou Hillary). A jornalista sublinha a manifestação
anti-Trump em plena Web Summit e no rodapé da emissão lê-se em letras
garrafais «Plateia de pé contra Trump». A câmara suspensa sobrevoa a
sala: é verdade que muitas filas se levantam e respondem ao apelo do
orador, mas a maioria não se levantou nem sequer aplaudiu.
Há semanas, em plena campanha, Trump, de boné encarnado a esconder o seu
pavoroso penteado, dizia num comício que as câmaras de televisão e a
imprensa estavam voltadas para ele, mas não mostravam o apoio que tinha,
nem dentro dos pavilhões onde comiciava, nem, sobretudo, fora deles.
E não mostraram.
A imprensa, os media americanos, da Europa e do mundo, não quiseram
acreditar na vitória de Trump. Nem mesmo depois do escrutínio
democrático (então não é que até a Câmara e Lisboa espalhou cartazes
pela cidade contra o voto do povo americano?). Para estes ‘democratas’, o
povo é soberano mas só quando vota como eles acham que devem votar.
Como é que um povo tão maduramente democrata e superiormente
inteligente ao ponto de ter eleito Obama há oito e quatro anos, afinal é
tão estúpido que pode ser capaz de elevar Trump a Presidente?
Trump não é do establishment, não é cool, desrespeita as mulheres,
não defende as minorias, nem a adoção por casais gay, o fim das emissões
de dióxido de carbono, o respeito pelo voto popular... o politicamente
correto. Trump não é Obama.
Na mesa de voto, no momento solitário de meter a cruz no boletim, o
indivíduo vota em quem confia que lhe dará mais bem-estar. Real. Não
virtual.
O americano médio tem hoje um rendimento só equiparável ao de 1999. Ou seja, quase duas décadas de estagnação ou retrocesso.
O politicamente correto, a economia virtual, a globalização podem ter
trazido muito progresso em vários domínios. Mas a classe média, o
cidadão remediado, americano como europeu, não ganhou nada com isso. E
esses são a maioria.
As elites, as novas elites, os lóbis de Wall Street, de Hollywood,
dos likes nas redes sociais e também dos media – que se confundem –
foram claramente derrotados.
O tal establishment de que se fala, com toda a propriedade, e que tinha em Hillary lídima representante, perdeu.
Na Web Summit, António Costa deixou cair o comentário: «A realidade virtual é sempre melhor do que a realidade real».
A realidade é só uma: o povo, instruído ou não, já não vai nisso. Quer economia real. Política real. Bem estar real.
A internet democratizou a informação. Tornou-a gratuita. As redes
sociais globalizaram-na. Mas, hoje, o investimento publicitário é
consumido pelos gigantes da net – Google, Facebook, Microsoft e
companhia. ‘Eles’ que, politicamente corretos, pugnam pela liberdade de
informação, mas bloqueiam páginas sem prévio aviso ou audição. São eles
quem define os conteúdos partilháveis e não partilháveis. E que os
monitorizam. São eles que fazem e determinam o pensamento dominante. Os
media, condicionados também eles pelo establishment e pelas elites
politicamente corretas – sociais, económicas, financeiras, culturais,
comunicacionais – misturam a informação com a opinião e vergam-se.
O futuro da informação é como o da água: ninguém paga pelo que é
grátis e abundante, mas no dia em que escassear ou perder qualidade
voltará a dar-se-lhe o devido valor.
Esse dia, como é óbvio e bem provado ficou nestas eleições americanas, já esteve bem mais longe.
O Ensaio Sobre a Cegueira é uma obra genial que, só por si,
justificaria a atribuição, merecida, do Nobel da Literatura a Saramago.
Mas era ficção.
Pior do que o ficcional mundo de cegos de Saramago, é o mundo da
realidade virtual em que vivemos e no qual quem tem obrigação de ter os
olhos bem abertos, e de mostrar e dissecar a realidade visível e
invisível, não quer sequer ver.
Porque, citando a canção do mais recente Nobel da Literatura, «the answer, my friend, is blowing in the wind».
Só não o vê quem não o quer ver... seja porque não é politicamente correto, porque não serve o sistema ou não dá likes.
IN "SOL"
12/11/16
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