Bob Dylan não merecia
Mais do que qualquer outra coisa, este prémio é um manguito a todos os grandes escritores norte-americanos dos últimos 40 anos. Roth, McCarthy, DeLillo, Pynchon, foram ultrapassados de moto por Dylan.
Vi em direto o anúncio do vencedor do Prémio Nobel da Literatura:
“strodmondstalet eigvarna literature prize vöng Bob Dylan…”. Quase caí
da cadeira. “strodmondstalet eigvarna”????? Estes gajos só podem estar a
gozar. Mas pronto. Quanto ao vencedor, acho bem. Também acho um bocado mal. Enfim, ainda não sei. Foi, sem dúvida, uma escolha corajosa.
No ano em que pela primeira vez o prémio foi anunciado por uma mulher, a
Academia mostrou ter tomates. Ou então que, lá dentro, estavam todos
sob o efeito daquelas cenas que o Bob fumava.
Mais do que qualquer
outra coisa – e o que, em menos de três horas, já se disse sobre o
papel da Academia Sueca na destruição das barreiras da literatura daria
para encher várias bibliotecas, ou discotecas – este prémio é um
manguito a todos os grandes escritores norte-americanos dos últimos 40
anos. Philip Roth, Cormac McCarthy, Don DeLillo, Thomas Pynchon,
geralmente apontados como possíveis galardoados foram ultrapassados pela
direita, de moto, por Dylan. Há uns anos, um membro da academia
criticava a literatura norte-americana por ser demasiado “insular”,
umbiguista.
Escolher Bob Dylan à frente de todos os outros é o mesmo que lhes dizer: “estão a ver o que é ser universal?” Recorde-se que Toni Morrison tinha sido a última norte-americana a receber o Nobel, há vinte e três anos.
Agora, a sério. Bob Dylan? É verdade que já tinha sido apontado
várias vezes como um dos favoritos, mas era uma espécie de brincadeira
paralela e secundária. Ninguém levava isso muito a sério até porque
nenhum outro letrista, talvez à excepção de Leonard Cohen, era apontado
como potencial nobelizado. E o que não falta são grandes letristas. A história do século XX está cheia deles.
Claro que, sendo discutível, se pode dizer que Bob Dylan está noutro
patamar. Tudo bem. Porém, repare-se nos nomes que o acompanham quando se
trata de escolher os melhores autores de letras da música
anglo-saxónica, de acordo com uma votação num site manhoso: John Lennon,
Eminem, Roger Waters, Elliot Smith, Kurt Cobain, Neil Young, Tupac
Shakur, Robert Plant e Freddie Mercury.
Pronto, talvez não seja a
melhor lista, mas mesmo uma que inclua Bruce Springsteen, Nick Cave,
Jarvis Cocker e Jay-Z, ou Joni Mitchell, Fiona Apple e Suzanne Vega, não
fornece nenhum nome que possa algum dia vir a estar nas cogitações da
Academia. Já para não falar que uma lista de potenciais letristas
nobelizáveis seria ainda mais “ocidentalizada” do que é habitual: ou alguém
consegue imaginar o Nobel ir para aquele grande letrista checo? Ou para
um grande baladeiro turco? Ou para um tipo que renovou a grande
tradição musical da África Ocidental? Ou para, por exemplo,
Chico Buarque? E, na minha modesta opinião, a opinião de quem não faz
parte da Academia, Chico Buarque é um letrista superior a Bob Dylan.
A
Academia é muitas vezes criticada por atribuir o prémio a escritores
desconhecidos, daqueles com nomes impronunciáveis, quando esse talvez
seja o efeito mais positivo do Nobel: o de permitir que alguns grandes
escritores com pouca ou nenhuma repercussão internacional vençam as
barreiras de um mercado editorial cada vez mais dependente das
“descobertas” recomendadas pelo mundo anglo-saxónico. Nesse sentido, atribuir
o prémio a Bob Dylan é um desperdício, uma espécie de parênteses em que
a Academia preferiu celebrar-se a si própria e à sua veia provocatória,
naquele género de provocação passivo-agressiva em que o galardoado é um
mero instrumento de agressão. Portanto, mais do que lhe atribuir o
prémio, a academia atirou-lho à cabeça. E o grande Bob Dylan não
merecia.
* Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e
autor do romance As Primeiras Coisas, vencedor do prémio José Saramago
em 2015
IN "OBSERVADOR"
13/10/16
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