A cor do crime
A América tem um problema para resolver e
não o vai resolver. De rajada, dois jovens negros são mortos. Por
polícias que não são negros. Pessoalmente, não acredito na teoria do
racismo. Digo, do racismo bruto e óbvio. Acredito mais no medo. Os
polícias serão (é a minha opinião) homens bons que, quando veem um
negro, ficam cheios de medo. O medo é até certo ponto uma coisa normal.
Um polícia é alguém que, por vocação, por profissão, arrisca ter a sua
imaginação canalizada para a violência. Um polícia de giro imagina
sempre: "E se? E se eu for atacado de repente, como vou reagir? Cobarde
ou herói, vivo ou morto?" Polícia algum quer ser assassino. Um polícia
normal quer, quando muito, ser herói: ajudar as pessoas, representar a
lei e a ordem. Chegar ao fim do dia vivo, são e salvo, e mantendo os
outros vivos, sãos e salvos. A maior parte do tempo isso acontece. Mas,
quando vê um negro, por uma razão qualquer, um número demasiado grande
de agentes da polícia ficam subitamente mais nervosos do que se tivessem
encontrado uma mala sem dono numa estação. Não, não é racismo. Ou seja,
não é racismo consciente. Maldoso, mal-intencionado, fruto de uma
decisão de consciência e monstruosa por parte do agente da lei. Acredito
piamente que, se perguntarem a estes agentes se são racistas, eles
responderão não. E passariam (a maior parte, pelo menos) o teste do
detetor de mentiras. Não são racistas. Simplesmente, têm mais medo
quando veem um negro. Pode ser a andar ou a conduzir um carro ou
simplesmente a beber um refrigerante. É involuntário, é natural, é
normal, é assim. Tal como as pessoas que, quando veem o Renato Sanches,
perguntam logo se ele nasceu mesmo no dia em que diz que nasceu. O
angolano José Eduardo Agualusa já não terá esse problema, por razões que
não vêm ao caso. Desculpem lá, mas isto é uma dúvida normal. É tão
normal como perguntar a Obama se nasceu mesmo nos EUA, porque a cor dele
não parece indicar isso. Por vezes, é certo, o resultado é dizer a
alguém nascido na Amadora "vai para a tua terra". Mas um erro todos
podemos cometer, não? Errar é humano.
O
vídeo que, em direto, a namorada do homem assassinado fez antes que os
polícias em estado de choque a pudessem impedir mostra uma coisa que não
me choca assim tanto e outra que me choca mesmo muito. Começo pela que
não me choca: um homem negro num carro gemendo e com sangue a empapar a
camisola. Vi suficientes filmes de ação para a cena me ser familiar.
Não,
o que me choca mesmo - me banza - é o modo articulado e bem-educado,
usando sempre as frases certas, com que a moça fala ao polícia que fez
os disparos. Essa parte eu não sabia, que uma mulher ao lado de um homem
baleado pudesse ser tão calma e articulada. Fosse comigo e eu estaria
aos berros, histérico, tal como todas as amigas brancas que eu tenho (e
são muitas). Aos berros, chorando ou insultando o autor dos disparos.
Mas a moça não. A jovem Diamond Reynolds fala com a maior calma
possível, e usando as frases certas (aliás, expressões feitas, friamente
burocrática, que reconheço de muitos formulários). E a sua calma denota
um saber de experiência feito, como diria Camões. Ela fala com calma e
usando sempre as frases certas, por duas razões básicas: para não levar
ela própria um tiro e também para acalmar o polícia - o pobre, mesmo com
o outro a esvair-se em sangue, ainda segura a arma nas trémulas mãos e
continua a apontá-la tanto ao moribundo como a ela. O agente não tenta
ajudar: está demasiado em pânico para se lembrar que salvar vidas também
faz parte do protocolo. Ou então não faz parte do protocolo - essa
parte caberá às ambulâncias, quando e se chegarem. A moça sabe - parece
saber - que o autor dos disparos não é mau tipo. Talvez ele até nem seja
racista. Provavelmente nem é - como poderia ser, se não aceitam
racistas nas forças policiais? É apenas um homem com medo. Armado. Na
academia ter-lhe-ão ensinado como reagir numa situação delicada. E ele,
melhor ou pior, aplicou até onde pode o protocolo. E a verdade é que o
negro podia estar armado. Aliás, segundo o vídeo de Reynolds, a vítima
tinha dito ao agente que trazia uma arma no guarda-luvas, como qualquer
americano normal, mas que tinha licença para ela. Estava tudo legal,
como com qualquer americano normal. É verdade, no entanto, que ele podia
ser um criminoso. Só fica a pergunta: acaso o polícia teria agido
assim, disparando quatro tiros, se encontrasse na estrada com uma luz na
traseira fundida Jeffrey Dahmer (17 vítimas), James Holmes (12
vítimas), Joseph Paul Franklin (pelo menos 14 vítimas)? Era bom, não
era? Mas improvável. Esses homens podiam ser assassinos, podiam ter alma
de assassinos, podiam até ter cara de assassinos - mas não tinham cor
de assassinos.
A moça no vídeo fala com
clareza e articulação porque foi treinada para isso. Quase parece uma
lei antiga inscrita sob a pele: "Filha, quando falares com um polícia
baixa a bola. Mesmo que, sendo tu gerente bancária, ele te confunda com
uma prostituta, baixa a bola. Mesmo que ele tenha acabado de dar um tiro
num inocente, mantém a calma. Usa só palavras formais. Frases feitas."
Caramba, a dado momento ela até diz: "Sim, sir, sim, eu mantenho as mãos
bem à vista. Mas o senhor acaba de disparar quatro tiros sem razão ou
provocação contra o meu namorado. Importa-se de ver se ele está bem?"
Porque ela sabe que as coisas normais numa mulher branca naquelas
circunstâncias - deixar de ser articulada, "entrar em histeria",
"desatar aos gritos", etc. - no caso dela e naquele contexto convém
evitar. Podem assustar o homem armado.
O
que eu vejo ali são anos de experiência interiorizada - décadas até.
Não vou dizer que está no código genético, mas pelo código cultural já
não ponho as mãos no fogo.
Uma amiga
minha namora com um afroamericano. E diz: "Eu tenho medo quando ele sai à
noite." Ir à mercearia comprar tabaco pode ser uma aventura letal.
E
agora cinco agentes foram mortos. É uma tragédia inaceitável. Uma
escalada impensável. Mas ocorreu.
É que os agentes são fáceis de
identificar - usam um uniforme. País algum pode tolerar que os seus
agentes da ordem se tornem alvos móveis. País algum pode permitir a
presunção de que usar uma farda policial se torne um risco. Ninguém -
por maior sentimento de injustiça que sinta - pode regozijar-se com
estas mortes. São uma acha mais numa tragédia. Vítimas inocentes numa
espiral insana e estúpida. Não interessam as causas, o pretexto ou uma
qualquer autoridade moral. "Vingar as mortes injustiçadas" não é
justiça. Só cabeças perversas ou muito básicas podem ver estes atos
bárbaros como justiça ou motivo para regozijo. Agora só podemos rezar
pelas vítimas e que as mortes destes polícias não sejam um mini-incêndio
do Reichstag - o pretexto que em 1933 faltava aos nazis para consumarem
o seu plano.
Em algumas escolas americanas já há cursos a explicar "como agir" caso alguém armado decida começar aos tiros. Deliramos ou quê?
A
América tem um problema a resolver. A cor do crime. E tem outro: as
armas. Qual deles resolverá primeiro seria uma ótima pergunta.
Infelizmente, a cada dia que passa, mais do que uma pergunta, está a
tornar-se uma piada de mau gosto.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
13/07/16
.
Sem comentários:
Enviar um comentário