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Senso d'hoje
EUGÉNIA TOMAZ
FISIOTERAPEUTA,
ARTISTA PLÁSTICA
SUPRANUMERÁRIA
DO OPOUS DEI
"Os membros da Opus Dei são privados do seu sentido crítico"
Dias depois da entrevista, Eugénia Tomaz enviou-nos um email: "As
indicações que estão a ser dadas aos membros [é para] não comprarem o
livro nem lerem." Mais alguns dias e nova mensagem: "Foi-me comunicado
por uma directora numerária e pelo representante máximo da Obra em
Portugal, Padre José Rafael Espírito Santo, que decidiram excluir-me
como membro da Prelatura. Apenas verbalmente e sem qualquer documento
oficial que tornasse objectivas as acusações de eu ser contra o espírito
do Opus Dei." Questionado pela SÁBADO, o director do gabinete de
imprensa da instituição, Pedro Gil, recordou que existe uma renovação
anual do vínculo dos fiéis ao Opus Dei a 19 de Março, dia de São José, e
que "a prelatura comunicou à Eugénia Tomaz que não via condições para
essa renovação dado que a visão que tem sobre o Opus Dei se distancia,
em pontos essenciais, da natureza e missão da prelatura tal como a
Igreja as definiu e o fundador as propôs". Motivo para acrescentar, por
email, as duas perguntas iniciais.
Pondera abandonar a Obra?
Não.
Do ponto de vista jurídico-canónico, não existe qualquer irregularidade
minha face ao compromisso que assumi há 21 anos. Há também um problema
teológico-espiritual que é necessário pensar conjuntamente e resolver. O
motivo que me levou a escrever o livro [Opus Dei Profundo –
Desconstrução de um Mito] é abrir a possibilidade a um momento de
reflexão – interna e pública – e mostrar que há uma realidade maior que
tem vindo a ser obstaculizada não só no interno do Opus Dei, mas também
na Igreja e na sociedade-cultura.
No comunicado, o Opus
Dei não refere que a leitura do seu livro foi interditada aos membros da
Obra. Diz apenas que tem ideias que se distanciam. Esta interdição está
em algum documento oficial?
A interdição faz-se nos meios
de formação pessoal (conversa e correcção fraterna) e colectivos
(formação semanal). Como é uma instituição laical, seria estranho que os
membros seculares emitissem uma proibição oficial contra um direito
próprio da liberdade dos cristãos leigos no mundo. Pelo contrário, a
interdição é dirigida ao espaço de consciência de cada um: os membros
são privados de exercer o seu sentido crítico e obrigados a adoptar o
parecer emitido por um ou dois.
Usa "mito" no título. Que mito sobre o Opus quer desconstruir?
É
uma referência ao fundador. Ele antecipa a revolução cultural,
científica e não o entenderam. Começa a mobilizar leigos, a Igreja e
chamam -lhe louco. E isso arrasta-se até ao Vaticano II. Ele sempre a
insistir que os leigos estavam lá a fazer esse futuro, que não pertence
apenas ao núcleo da Igreja institucional. Isso nunca foi entendido.
Depois, ele insistiu na configuração jurídica de uma prelatura. Quando
isso avança, com João Paulo II, em 1982, ele vai configurar os leigos
numa nova forma institucional. Este é o problema.
É o problema para quem está na Igreja, que não aceita a existência de uma nova prelatura?
É
estranho – e é isso que as pessoas não conseguem perceber – porque é
que surge um satélite dentro de uma estrutura hierárquica da Igreja. Os
leigos precisam de estar configurados? Porque é que é precisa uma
prelatura? Significa que os leigos não podem estar, sem mais nem menos, a
debitar doutrina. Tinham de ter formação.
Uma católica praticante dizia-me que não percebe o que é o Opus. Esta é uma dúvida comum a quem não é católico.
Os
leigos têm a missão evangelizadora, que não é estar no púlpito, não é o
estilo das paróquias. É na sua profissão. Isso é o Opus Dei.
A perspectiva de que o Opus é elitista e selectivo é errada?
Não.
Escrivá começa nas periferias, como o Papa Francisco. Foi para as ruas,
os hospícios, os hospitais. A Igreja não é a hierarquia, o Vaticano; é
toda a cristandade que é "um mar sem margens". Como falo no livro, era
necessário ir também aos intelectuais. Ele [o fundador] dinamiza as duas
vertentes. Quando se cria uma prelatura, fica afunilado e a preferência
é a Cultura: "Vamos a este topo evangelizar."
Como chegou ao Opus Dei?
Eu
tratei, na clínica do Estoril, uma supranumerária que me fez um
contacto com a residência dos Álamos, [aonde] comecei a ir. Passados
dois anos e meio pedi admissão porque me propuseram: "Esta pessoa está
apta e vai perceber esta realidade." Mas não é uma realidade afunilada. É
a revolução cultural, científica e doutrinal. Há muitas pessoas, até da
Obra, que não entendem. Têm formação e aplicam -na ao modo
institucional, do clero.
Há pessoas, no interior, que não compreendem o Opus Dei?
Há
um risco. Escrivá chamou a atenção na homilia que fez na Universidade
de Navarra, em 1965, (Amar o Mundo Apaixonadamente): atenção à
esquizofrenia, às bipolaridades. Ele previa o problema de as pessoas,
metidas numa revolução, não conseguirem geri-la. Com a prelatura e a
formação que temos, sabendo os documentos, estudando doutrina, a pessoa
não pode ficar estritamente ali, senão isso é o clero, a consagração, a
vida monástica. Tem que traduzir para a revolução cultural e científica.
E nem toda a gente consegue fazer uma coisa destas. E adoecem.
Na sociedade ou no Opus?
As
duas coisas. Quando os formadores não entendem e debitam a matéria, as
pessoas adoecem: "Não tenho fé; não acredito no que está a acontecer; se
a ciência não comprova essa realidade maior, como é que eu vou
transformar isso, do ponto de vista cristão?"
Questiona-se
a vivência diária do Opus Dei, a mortificação da carne, a existência de
uma lista de livros cuja leitura é limitada…
Não é
qualquer livro que pode ser lido. Há indicações internas porque há uma
certa ausência de sentido crítico: ou se domina uma pluralidade de
discursos – artístico, científico, político, económico – ou tem de se
ser orientada. Essa orientação pode ser excessiva. Nunca liguei a essas
listas. Para fazer trabalhos na minha aérea [e] como artista tinha de
consultar outras coisas que extravasavam essas listas.
É errada a ideia de que as pessoas da Obra não vão ao cinema e não assistem a espectáculos?
Os
numerários [celibatários, vivem normalmente nos centros de Opus Dei].
As outras pessoas podem ir. Há sempre uma indicação interna do ponto de
vista moral, ético. Só que isso não pode condicionar a liberdade da
pessoa de construir na sua profecia o seu talento, em função de mais
realidade. Se fica condicionada, fica encerrada.
E é um risco?
É
um risco porque não constrói. O secretismo é as pessoas não conseguirem
explicar. O Opus devia estar aberto ao mundo. Como não se entendeu a
maior parte deste fenómeno, há um fechamento.
Este secretismo parte de um fraco entendimento da sociedade ou dos membros da Obra?
Interior e exterior. Eu deparo-me com falta de fé nas pessoas que me estão a dar formação. Não podemos ficar neste fechamento.
Viu os filmes e leu os livros [de Dan Brown]?
Eu fui ver o filme de O Código DaVinci e do Anjos e Demónios.
Passam a imagem de que é uma organização secreta, em busca do poder, com violência.
Há
pessoas e pessoas. Esse secretismo, essa violência interna, essa
estranheza não correspondem à realidade. Observa-se uma tradição da
Igreja (que o Escrivá vai buscar à tradição da Igreja) que é viver de
acordo com a prática cristã no ano civil: vamos à missa, vivemos os
sacramentos de iniciação cristã, a Quaresma… Mortificação, ele foi
buscar os cilícios…
As senhoras dormem em tábuas?
Nós
temos uma cultura que está a favorecer isso. Até os banhos de água
fria. Li que, numa creche na Sibéria, as criancinhas vão para a rua
tomar banho de água gelada.
Os sacrifícios são obrigatórios?
Nem
toda a gente os pratica. É a liberdade laical. Não somos consagrados. O
Escrivá fazia, porque tinha um contexto fundador. Quem está dentro da
Igreja percebe por que é a mortificação, os fenómenos da mística. Mas
não é a prática dos leigos. Foi um fantasma que se criou e que se
ampliou. O Dan Brown trabalhou isso de um modo grotesco, até porque
estes autores e realizadores não têm a linguagem multidisciplinar que é
necessária.
Pratica a mortificação?
Não é
prática para os supranumerários, é dos numerários e dos agregados. Mas é
livre. A pessoa pratica, pode ter indicações dos directores ou
orientadores espirituais, mas é doseado. Não são aquelas práticas (a
autoflagelação) como o Dan Brown põe. A mortificação cristã é privar de
uma matéria corrompida para fazer ver o novo estado da matéria.
A Quaresma é o exemplo dessa fase de privação.
É
uma fase de privação mas a cultura da moda está nessa: ir para o
ginásio, deixar de comer doces, gorduras. Há uma salvação anunciada que é
estética. O Cristianismo é um bocado diferente: uma identificação com o
redentor, flagelado e crucificado. Entramos todos nessa realidade maior
e não porque somos bonitos, porque temos poder, dinheiro… são
ideologias.
Há rituais obrigatórios, como sair da cama e beijar o chão?
Normalmente,
a pessoa levanta-se a agradece ao redentor: "Sirvo-te!" E ajoelha-se
perante a majestade de Deus. Mas eu não faço isso porque fico com
tonturas [gargalhada]. Não me vou confessar por causa disso. Estou na
minha condição laical e, se não conseguir levantar-me de repente, não me
levanto e não é pecado. Esse rigor é fantasma. Há pessoas que levam
isso, de facto, em rigor. Quando comecei a sentir um certo
encaminhamento dessa constrição interna, estava a ficar sem respiração e
abri portas, reconciliando-me com a cultura.
* Entrevista à revista "SÁBADO" editada a 11/06/16
*A fisioterapeuta e
artista plástica, de 58 anos é há mais de duas décadas supranumerária,
escreveu o ensaio Opus Dei Profundo – Desconstrução de um Mito (editado
pela Guerra & Paz) e foi excluída pela instituição que diz ter
interpretações distintas das suas.
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