Comboios
rigorosamente vigiados
Não havia turmas
mistas nas escolas e liceus que frequentei, nos anos 50 e 60, ou só as
havia na fase final do ensino liceal e em casos muito particulares. Era
muitas vezes assim, nesse tempo, e não apenas no âmbito escolar.
Masculino e feminino costumavam ser sinónimos de mundos separados.
Felizmente, a partir dos anos 70, o Portugal censório e puritano onde as
mulheres não usavam biquíni foi-se abrindo a outras formas de ver e as
coisas, nesse plano, mudaram substancial- mente. O horizonte das meninas
e das mulheres tornou-se mais amplo, mais justo, e nas últimas décadas
masculino e feminino passaram a coexistir e socializar nos mesmos
espaços, salvo algumas exceções que têm que ver com o pudor e a nudez.
Mas, tirando essas exceções, as mulheres frequentam com total à-vontade
quase todos os espaços dantes reservados aos homens, da parada do
quartel às bancadas do estádio de futebol. Ainda há "santuários"
masculinos, como a taberna, por exemplo, mas estão em vias de extinção.
Essa
tem sido a nossa maneira de viver, idêntica à de todas as sociedades
não segregadas do Ocidente, que prezam e encorajam a igualdade entre
sexos, e ainda bem que assim é. Foi, por isso, com alguma inquietação
que soube que uma companhia ferroviária regional alemã, a Mitteldeutsche
Regiobahn, decidira criar carruagens exclusivamente para mulheres na
linha que liga Leipzig a Chemnitz. Essas carruagens estarão à disposição
das passageiras que viajem sozinhas ou com crianças de idade inferior a
10 anos.
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Alguma imprensa associou essa
medida ao medo causado por gangues de muçulmanos. Certos jornais
lembraram os acontecimentos da noite de fim de ano junto à estação de
comboios de Colónia, na qual dezenas de mulheres sofreram ataques de
natureza sexual por parte de homens de aspeto árabe. Um desses homens,
um argelino, acaba, aliás, de ser formalmente acusado pela justiça alemã
e vai ser levado a julgamento. O representante da Mitteldeutsche
Regiobahn negou que a decisão de criar carruagens só para mulheres
estivesse ligada aos acontecimentos de Colónia ou a problemas de assédio
sexual. A ideia, disse ele, partiu das passageiras, "que querem mais
privacidade", mas é muito provável que a palavra "privacidade", neste
contexto, signifique sobretudo "segurança". Vem, aliás, a propósito
lembrar que também no Reino Unido o problema se coloca, com premência, e
que o próprio Jeremy Corbyn, o líder dos trabalhistas, sugeriu que, em
horário noturno, os comboios britânicos passassem a ter carruagens
exclusivamente para mulheres, que assim estariam mais defendidas de
agressores sexuais. E algo de semelhante já foi pensado para o metro
londrino.
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Não sei se estas precauções
foram geradas por agressões de muçulmanos ou se tiveram uma origem e um
âmbito mais abrangentes. Em teoria podemos até admitir que, em certos
casos, e como afirmou o porta-voz da companhia ferroviária alemã, as
mulheres queiram efetivamente menos exposição. Mas mesmo nesse caso,
nessa hipótese mais branda, estamos perante uma alteração de paradigma. O
que me importa sublinhar aqui é que este nível de preocupação com a
segurança ou com a tranquilidade das mulheres nos transportes públicos,
venha ele dos órgãos decisórios ou das próprias mulheres, é um sinal de
alarme que nos diz que algo está a mudar na Europa e para pior. Seja
para defender seja para recatar quem nelas viaja, a criação de
carruagens exclusivamente femininas representa um retrocesso
civilizacional e um abalo em equilíbrios e igualdades que custaram muito
a conseguir.
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Eu gostaria de poder
dizer a Corbyn e aos diretores da Mitteldeutsche Regiobahn que a
resposta adequada às questões da insegurança pública não pode ser a
separação dos sexos. Gostaria de lhes dizer que as sociedades onde nos
orgulhamos de viver não devem seguir essas estratégias de isolamento e
compartimentação. Mas, se calhar, estou a ser ingénuo e a pensar segundo
os parâmetros de um mundo em vias de desaparecimento. Se calhar o mundo
aberto onde até agora nos movemos já começou a fechar-se e as mulheres,
que estão mais expostas a assédios e ataques, passaram a estar menos
livres para viver a sua liberdade. E isso, se se adensarem as nuvens
negras que vejo no horizonte, é uma injustiça e um grande
empobrecimento. Para todos nós.
* Historiador e romancista
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
04/04/16
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