O piropo
Com tantos
problemas que o país tem em mãos, quem havia de dizer que o Parlamento
se iria ocupar, no final do ano, a discutir e a aprovar uma lei contra o
uso do "piropo"? Será que é matéria tão pertinente assim, quando o
Código Penal já contempla a almejada criminalização? Diz claramente o
n.º 1 do art.º 181: "Quem injuriar outra pessoa (...) dirigindo-lhe
palavras ofensivas da sua honra e consideração é punido com pena de
prisão até três meses ou pena de multa até 120 dias". A pena é branda?
Então recorra-se ao art.º 170.º (mais severo ainda perante casos de
importunação sexual). Mas por quê retirar ao piropo, na sua dimensão
holística, um espaço de sobrevivência?
Lembre-se que o "piropo" ou
"galanteio" é um microtexto de literatura oral, reconhecido como tal
nas diversas culturas, portanto parte integrante do património
imaterial. Alguns são até verdadeiras alegorias estéticas, merecedoras
de estudo literário. Claro que aí não entram conteúdos que, violando as
regras da cortesia e da boa educação, mas também da autoestima pessoal e
social, são já objeto das punições legais mencionadas. Seria até
absurdo encobri-los sob o manto diáfano de um pretenso uso cultural.
Veja-se
alguns dos muitos piropos que enriquecem a nossa literatura oral: "Vou
pedir o molde ao teu pai pra fazer bonecas"; "Ainda dizem que as flores
não andam!"; "Deus te guarde e me dê a mim a chave"; "Se Adão se perdeu
por Eva com uma só maçã, eu perdia-me por ti com o pomar inteiro"; "Se a
beleza fosse pecado, tu não terias perdão de Deus"; "Muito mal devem
andar as coisas no Céu para os anjos andarem na terra"; "Se o Sol
pudesse mirar-te deixaria de haver noite"; "Quem me dera ser o copo onde
bebes, tu matavas a sede e eu matava o desejo"; "Que me valha a Virgem
Pura, mas primeiro a tua formosura"; "Se eu chegar a morrer nos teus
braços, hei de voltar do Céu para morrer de novo"; "Teus olhos
lembram-me o mar, e pobre de mim que não sei nadar"; "Ao ver uma flor
assim, vou já comprar o jardim"; "Se me deres as tuas lágrimas, eu
nascerei nos teus olhos".
Subestimar, criminalizando, estes
microtextos, deixa caminho aberto a olhares reprovadores para outros
géneros de literatura oral, de igual riqueza estética ou antropológica,
como sejam provérbios, quadras, apodos tópicos, trava-línguas, pregões,
fórmulas de superstições, perlengas, anfiguris ou adivinhas. Seria
péssimo.
* ESCRITOR
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
15/01/16
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