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Os 700 dias de cativeiro
das escravas de Heitor
Como o empresário de Famalicão montou uma rede que durante dois anos aprisionou 40 mulheres portuguesas e brasileiras.
Antes de se dedicar ao tráfico e à exploração de mulheres vendia automóveis, mas os negócios eram ocasionais e tirava pouco mais de 500 euros por mês. Já foi modelador na indústria do calçado, carteiro e segurança privado. O dinheiro não chegava para sair de baixo das asas da mãe, auxiliar educativa que criou o filho sozinha depois de o marido, agente da PSP, abandonar a família quando Heitor tinha 12 anos.
Há pouco mais de sete anos conheceu Kelly no Brasil e lançou-se no
negócio. Ela foi a primeira porta para conhecer os corredores em que a
prostituição se move. Trouxe-a para Portugal e juntos montaram as bases
da actividade. Kelly conhecia outras mulheres que andavam na vida e
proxenetas que acabaram por ser os primeiros contactos do companheiro
para montar a rede no Norte do país.
Heitor conta com angariadores no Brasil que lhe facilitam o contacto
de mulheres interessadas em vir para Portugal. As prostitutas chegam por
trajectos indirectos, entrando em aeroportos secundários de Espanha,
Portugal e França e justificando as viagens com motivações turísticas,
de modo a iludir os serviços de fronteiras. Os angariadores no Brasil
tratam de todas as formalidades e as passagens são pagas por Heitor ou
alguém a seu mando através da Western Union. Antes do dia do embarque,
as mulheres recebem dinheiro de bolso para a viagem e instruções
precisas sobre o comportamento a ter durante o voo. Atitudes contidas,
roupa discreta e nem uma palavra a mais que o necessário.
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Uma vez em território português, o empresário de Famalicão
encarrega-se do resto. Heitor espera-as nos aeroportos, enfia-as numa
carrinha e segue até à residencial. Pelo caminho explica as regras do
jogo. Nenhuma saiu do Brasil ao engano – contou durante o julgamento –, e
tudo o que têm de fazer já faziam antes. Quanto mais clientes
seduzirem, mais dinheiro juntam. Um único senão: parte dos rendimentos
obtidos será usada para pagarem a passagem e as despesas com alojamento e
comida. Mas não será difícil, o dinheiro chega e sobra.
A factura
Só que nada restaria ao final de cada
noite. As mulheres perceberam--no ainda antes de abrirem as malas. Mal
se instalaram nos quartos chegou a factura. O passe, os encargos com a
passagem, as despesas de deslocação, o dinheiro de bolso custam 3500
euros. A esse valor será acrescentada a diária, que corresponde ao
acolhimento e à alimentação, entre 15 e 20 euros por dia. Para
liquidarem a dívida, deveriam recorrer à prostituição, em regime de
exclusividade, não podendo romper esse acordo nem ausentar-se
definitivamente antes de saldar a dívida. Para acautelar fugas e saídas
não programadas, Heitor criou um sistema de multas para punir faltas e
atrasos não justificados.
O negócio do empresário de Famalicão não chegaria muito longe sem a
ajuda de um grupo de funcionários da sua confiança para tomar conta da
contabilidade, da segurança, da vigilância da portaria, do serviço de
bar e do acolhimento das mulheres estrangeiras. A residencial está
totalmente murada. Todos os espaços do edifício estão também equipados
com sistema de comunicação rádio, campainhas de aviso e um circuito de
iluminação e vigilância CCTV (Closed-Circuit Television, uma rede
fechada de televisão), que permitem controlar os acessos de
funcionários, colaboradores, clientes e intrusos.
Jornadas
As mulheres brasileiras e portuguesas têm
uma jornada diária de 11 horas, sem contar com uma pausa de duas horas
para descanso e refeições. A residencial funciona todos dos dias entre
as 15h00 e as 20h00 e entre as 22h00 e as 4h00. A discoteca, em Santo
Tirso, está também aberta entre as 22 horas e as 4h. Entre as várias
tarefas que desempenham, as prostitutas têm de aliciar os clientes
oferecendo bebidas e depois levando-os aos quartos. A tabela de preços
varia consoante a hora. Na residencial são 25 euros por 20 minutos antes
das 22 horas. Depois desse horário são 40, 50 e 100 euros consoante o
período que passam no quarto – entre 20 minutos e uma hora. Ou 50, 65 e
100 euros na discoteca. Do total que as mulheres fazem por noite, uma
parte reverte para Heitor: 10 euros na residencial e 15 euros na
discoteca. O resto fica para elas. A não ser que tenham o azar de
pertencer à segunda categoria de mulheres. Nesses casos, a totalidade
dos rendimentos vai para o empresário, que usa essas quantias para
abater a dívida do passe e da diária.
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À chegada a cada um dos estabelecimentos é distribuído a cada mulher
um cartão de consumo com um número que corresponde a um campo da tabela
de controlo. Quando uma delas solicita “um privado”, o funcionário
regista no cartão dela e na tabela o acto de prostituição. Os preços são
dissimuladamente anotados no cartão de cada cliente, entregue à entrada
no estabelecimento, e pagos em regra antes de entrarem nos quartos.
O esquema de Heitor funcionou sem obstáculos durante dois anos, ou
assim parecia. Um ano após abrir a discoteca e a residencial já os
inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras começavam a
suspeitar que dentro das casas haveria um grupo de mulheres aprisionadas
e negócios obscuros. Ao longo de meses vigiaram os passos de Heitor e
dos funcionários e, assim que recolheram indícios das actividades
criminosas, irromperam na discoteca e detiveram dezena e meia de
suspeitos e ainda 40 mulheres, 17 portuguesas e as restantes
brasileiras.
Ao todo 15 arguidos foram a julgamento no Tribunal de Vila Nova de
Famalicão. O colectivo de juízes deu como provados 12 crimes de tráfico
de pessoas e um de branqueamento de capitais. Os condenados a pena
efectiva foram Heitor, o cabecilha do grupo, Ivo, o seu gestor, e Kelly,
a companheira, que apanharam 12, oito e seis anos de prisão.
A Relação
do Porto veio no entanto reduzir já este ano a pena do líder da
organização para nove anos. Kelly viu também a sua pena desagravada para
cinco anos de pena suspensa. Dos restantes 12 arguidos, três foram
absolvidos e os restantes condenados a penas suspensas entre os cinco e
os 14 meses de prisão.
As iniciais usadas no acórdão da Relação do Porto para identificar os arguidos foram substituídas por nomes fictícios.
* Negreiros comparáveis aos do século XIX para quem a justiça portuguesa foi benevolente.
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