11/06/2015

MANUEL SÉRGIO

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A lei da selva: 
estádio supremo 
do futebol?

O presente artigo consubstancia boa parte do que se diz acerca do organismo máximo do futebol mundial e dos seus negócios. Demais, com a demissão do Sr. Joseph Blatter, quatro dias depois de ser reeleito presidente da FIFA, muitas das suspeitas, que corriam de boca em boca, segundo alguns analistas, poderão concretizar-se!

Não tenho ódio a ninguém, não sinto inveja de ninguém, sei que me torno abjeto quando trato alguém como objeto. Mas levantaram-se com tal intensidade os alertas para os perigos que adviriam da continuação do Sr Blatter, como presidente da FIFA, que só por sonambulismo, ou cobardia, é possível calar uma palavra de rejeição da política seguida e “legislada” por uma classe dirigente formada (se é verdade o que se diz, repito) na total ausência dos mais elementares princípios éticos. A direção da FPF, a UEFA, o Luís Figo, o David Beckam, etc., etc. tornaram evidente o tempo, politicamente terceiro-mundista, em que o Sr. Blatter vivia, como presidente da FIFA.

Miguel Real, filósofo e crítico literário (como outro não se encontra, na literatura portuguesa, depois de João Gaspar Simões) escreve, no seu último livro, Portugal: um país parado no meio do caminho, 2000-2015, editado pela Dom Quixote: “É fundamental tornar evidente um tempo arqueológico, que evolui historicamente, em camadas descontínuas, tentando justificar, tanto quanto possível, a existência actual de uma sociedade sonâmbula, desprovida de esperança, destruída por um presente político, subordinada de um modo fixo e patologicamente obsessivo, mesmo cego, aos valores da economia, do liberalismo financeiro e da razão contabilística” (p. 38). No entanto, para Miguel Real, “pensar o contemporâneo é igualmente encarar os actores políticos mais como títeres de um sistema (que mais os controla a eles do que eles ao sistema) do que como sujeitos activos da História” (op. cit., p. 41). Mas, será que a crise que sobre nós se abateu é unicamente financeira? Cumpre, ou não, ao futebol-espetáculo dos nossos dias desempenhar um papel imprescindível, na difusão e expansão da ideologia neoliberal?

Enquanto a vida mo permitir, sou um investigador incansável do que, material e espiritualmente, me explica o desporto e, muito particularmente, o futebol. Encontrei, por isso, há três anos, em Santiago do Chile, do Monde Diplomatique (2004), uma pequena publicação, intitulada Deportes, onde colhi o seguinte: “o futebol desenvolve, por vezes, os dois parâmetros mais detestáveis do sistema capitalista. Por um lado, um funcionamento mafioso, na busca do lucro máximo, sem olhar a meios, nem a valores (muitos dirigentes não duvidam em recorrer a sociedades off-shore, instaladas em paraísos fiscais, que permitem lavar dinheiro sujo, corromper, organizar negociatas no seio mesmo dos clubes, financiar o doping ou promover apostas clandestinas).

Por outro lado, difunde uma ideologia baseada na ideia do super-homem, da força unicamente física, de um nacionalismo exacerbado, o que explica que, em alguns clubes europeus, as claques se distingam pelas mais reacionárias ideologias e atitudes” (p. 28). E remata assim o autor: “Los entretelones del fútbol, bello espectáculo que entusiasma a millones de persones, a menudo no son otra cosa que una cloaca mafiosa”. Do El País, de 2 de Junho de 2015, emerge também uma crítica, sem esbatimento da coragem necessária, para fazê-la: “Hoy, el fútbol profesional se há convertido en un Estado plurinacional cuyos dirigentes se reparten las carteras de responsabilidad y los pimgues beneficios, no dudando em amañar resultados, para poder seguir manteniendo este negocio, en constante crecimiento” (p. 12).

Conheço muita gente honesta, no futebol de alta competição. Mas, havemos de reconhecê-lo, por vezes, ele não passa de subsistema do sistema capitalismo. E, assim, porque só quantifica, simplifica, imediatiza, uniformiza, é bem possível que aliene e robotize e embruteça... ao serviço da classe dominante, onde muitos dos dirigentes se integram!

O Desporto supõe incontornavelmente um lugar social de nascimento. O Desporto é, para mim, um dos aspetos da motricidade humana, ou seja, do movimento, intencional e em equipa, da transcendência (ou superação). Verdadeiramente, não é só uma Atividade Física, porque é, de facto, uma Atividade Humana. Ora, atualmente, “a economia política (o saber/ciência, regulador do Oikos, da Polis, da Civitas, da Society) deixou-se abastardar e perverter, ao admitir e sublinhar a completa redução de todo o relacionamento social e humano aos padrões das trocas comerciais e mercantis. a, a indagação dos factores e motivos, que infra ou sobre-determinaram tal estado de coisas, não ficará completa e exaustiva, enquanto não se identificar, na sua origem, o Sistema Capitalista, compendiado e caracterizado pelo patriarca Adam Smith, em primeiro lugar” (Manuel Reis, Na Crise, Edicon, São Paulo, 2009, p. 23). Por isso, não nos devem causar um espanto “sobre-humano” as palavras de Loretta Lynch, procuradora-geral dos Estados Unidos:

“A FIFA é corrupta até às mais altas esferas”. E Loretta Lynch continua: “O que é verdadeiramente preocupante é que as investigações têm mostrado que de cada vez que a FIFA despediu funcionários corruptos, após investigações internas, estes foram substituídos por outros que acabaram por fazer o mesmo” (A Bola, 4 de Junho de 2015). Se é verdade o que venho de escrever (o mal prova-se, o bem presume-se) compreende-se o que o El País, de 2015/6/5, noticia: Os delitos por corrupção, suborno e branqueamento de capitais, que assolam a FIFA, cresce, dia após dia. O presidente da Federação Irlandesa de Futebol reconheceu que a FIFA lhe ofereceu uma gorda quantia, para que não recorresse à justiça ordinária, em relação ao escândalo que foi o golo da seleção francesa, que permitiu a presença da equipa gaulesa, no Mundial da África do Sul. Enfim, o futebol produzido, reproduzido, pelo neoliberalismo triunfante é este e não pode ser outro!

A missão de um desportista culto, de hoje, é compreender o sentido do desporto que faz ou que aplaude. E lutar por um desporto de grande dignidade cívica e de plenitude humana. Há um ftutebol que está a mais – num mundo outro! No “tecnocosmo” que nos querem impingir ainda impera a “lei da selva”. Na ciência de um certo futebol, que querem que se traduza tão-só em equações, fórmulas ou estruturas químicas, a ética não tem lugar. Ora, o tecnocosmo mecânico, sem alma, é o que melhor serve os interesses de quem nos explora. E o futebol não passa de um passado que é preciso conservar e não de um futuro que é preciso construir!
 
*Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto

IN "A BOLA"
07/06/15



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