O PS e o populismo
soft de Nóvoa
O único erro que António Costa não pode cometer é fazer promessas que não possa cumprir nos actuais condicionalismos europeus.
1. Se alguém não tivesse percebido o significado da
candidatura de Sampaio da Nóvoa a Belém, bastou-lhe ouvir no domingo
passado as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa na TVI.
Com uma “perversidade” inigualável (a palavra
não tem sentido pejorativo), Marcelo disse que era um excelente
candidato para unir toda esquerda – do PS à esquerda radical. Percebe-se
porquê. Sampaio da Nóvoa é a melhor garantia de que a sua candidatura a
Belém se transformaria, muito provavelmente, num passeio tranquilo. O
antigo líder do PSD só vai decidir sobre a sua candidatura depois das
legislativas. Não perderia por nada no mundo a sua pregação dominical
que bate todos os recordes de audiência (mérito dele). Mas também lhe dá
jeito esperar pelos resultados das legislativas. Passos Coelho pode ser
contra a sua candidatura. Mas, tal como António Costa, há realidades
que o transcendem. Além disso, se o PSD ganhar as eleições (e, numa
crise à dimensão da que vivemos por cá e na Europa, tudo pode
acontecer), a sua capacidade de impor um candidato aumentaria bastante.
Marcelo
sabe o que significa a candidatura de Nóvoa. É um candidato que agrada à
esquerda do PS e à esquerda radical. E é justamente por isso que muito
dificilmente ganhará eleições que se decidem no eleitorado central. O
seu problema não é o de ser desconhecido, coisa que o PS resolveria
facilmente se fosse o seu candidato. O seu problema é que a esquerda à
esquerda do PS vale realmente muito pouco (à excepção do PCP, que sai
fora desta lógica). O BE é liderado por seis pessoas, cada uma
representando uma tendência que, por sua vez, deve incluir umas dez
pessoas, e falta-lhe o Tsipras lusitano (e a realidade da Grécia) para
unificar as infinitas fracções e os exacerbados egos que o caracterizam.
O Livre, o Agir e o Tempo de Avançar, com algumas excepções (aqueles
que não andam pelas televisões), reflectem a ambição de meia dúzia de
protagonistas que se vêem a si próprios como únicos e imprescindíveis.
Somados, valem muito pouco.
2. A entourage
de Sampaio da Nóvoa já percebeu que não pode deixar que se lhe cole à
pele esta imagem demasiado esquerdista. Vai tentar apresentá-lo como uma
espécie de “Podemos solitário”, nem de direita nem de esquerda,
pairando acima dos partidos numa retórica de “a gente contra a casta” à
portuguesa. A sua identificação com Eanes e com o seu “despojamento”, é
uma espécie de gato escondido com o rabo de fora. Mas também representa o
último protesto de uma esquerda que, depois do 25 de Abril, e sobretudo
depois da eleição de Mário Soares em 1986, sempre se sentiu traída pelo
PS e pela sua governação ao centro.
Ramalho Eanes, hoje uma
figura respeitável, tentou decapitar o PS (e, já agora, o PSD de Sá
Carneiro), com a criação de um partido político de inspiração mais ou
menos terceiro-mundista, destinado a “moralizar” a política portuguesa. O
destino do país podia ter sido outro, muito diferente (e muito pior),
quando, na primeira volta das presidenciais, essa esquerda eanista
utilizou a ruptura entre Mário Soares e Salgado Zenha para ajustar
contas com o líder socialista. A popularidade de Soares (depois do
programa de austeridade imposto pelo FMI que teve de aplicar) estava
próxima de zero, levando toda a gente a acreditar que seria um alvo
muito fácil de abater. A primeira volta foi uma luta brutal sobre o
destino da esquerda democrática portuguesa, que felizmente Soares
conseguiu resolver por muitos e muitos anos.
Com a crise, voltamos
a um cenário idêntico com outros protagonistas incomparavelmente piores
e em circunstâncias que, verdadeiramente, estão a pôr à prova as
democracias europeias. O que, em 1986, podia ter sido uma tragédia (ou
uma perda de tempo) no caminho para uma democracia ocidental, ou seja,
sem adjectivos, pode vir a ser agora uma triste comédia. Os apoiantes de
Sampaio da Nóvoa acreditam que este poderá mobilizar movimentos sociais
e políticos que atravessam o país sem encontrar expressão nos partidos
do sistema, que ele será o candidato dos patriotas e dos que querem
devolver a dignidade ao país e ao povo. Mas sobre o que pensa o
candidato das questões que ditarão o nosso destino, ninguém sabe. O que
pensa da Europa, da economia, da reforma do Estado Social, do euro? Não
sabemos. “Chegou o tempo de mudar de tempo” pode soar bem mas não quer
dizer rigorosamente nada.
3. O segundo duche frio
para os socialistas foi o anúncio (já esperado mas, compreensivelmente,
ainda não interiorizado) de António Guterres. Temos de ouvir o que
Marcelo vai dizer logo à noite embora, neste caso, as suas palavras
possam ser menos “perversas” e mais sinceras. Com Sampaio da Nóvoa e sem
Guterres, pode dizer-se que está em maré de sorte mas esta não é toda a
história. Ele e Guterres repartiram entre si, ainda antes do 25 de
Abril, o estatuto de mentes mais brilhantes da sua geração, ambos são
católicos praticantes, ambos sempre tiveram preocupações sociais.
Guterres governou quando Marcelo era o líder do PSD e lhe fez algumas
“partidas” altamente inconvenientes como o referendo sobre o aborto. Mas
enquanto foi preciso cumprir as regras de Maastricht para entrarmos no
euro, garantiu a aprovação dos Orçamentos necessários. Guterres foi
líder socialista, primeiro-ministro, protagonista destacado no Conselho
Europeu, amigo de uma geração de líderes mundiais de centro-esquerda de
grande projecção. Foi-lhe oferecida de bandeja a presidência da Comissão
Europeia, que rejeitou. Desempenha há quase dez anos as funções de Alto
Comissário da ONU para os Refugiados, num tempo tremendo de desgraça
humana, com determinação e eficácia. Não pretende voltar à política
portuguesa, o que se compreende, mesmo deixando António Costa numa
posição difícil. Marcelo, penso eu, não desgostaria de travar a batalha
com alguém que vê ao seu nível intelectual. Perder com ele seria a única
derrota que não lhe atingiria excessivamente ego.
Desde que foi
publicamente conhecida a decisão de Guterres, a direita lançou-se num
coro de lamentações hipócritas e os socialistas ficaram sem nada para
dizer e, consequentemente, começaram a disparar para todos os lados.
Jaime Gama também não será candidato por razões absolutamente
irrevogáveis: precisa de tratar dos netos. Depois de uma grande carreira
política e com a política no estado em que está, percebe-se. Vitorino
organizou a sua vida profissional como advogado, quando saiu de
comissário, mantendo apenas a sua militância europeia dentro e fora de
portas, onde a sua opinião ainda tem imenso valor. Nenhum deles se
sujeitaria, creio eu, a um debate público hipermediatizado, onde não há
tempo para respirar e onde os pequenos, médios e grandes escândalos se
sucedem a uma velocidade alucinante.
Esta histeria presidencial
que dificulta a vida ao líder do PS acabará por desaparecer,
permitindo-lhe regressar ao seu calendário político para as
legislativas. Toda a gente o critica por andar preocupado com o “quadro
macroeconómico” do país e com um programa que ninguém vai ler. Se bem
percebo, o quadro macroeconómico é necessário para avaliar a margem de
manobra de um governo socialista para desenvolver políticas diferentes
das que foram imposta pela troika e que o Governo aplicou
diligentemente. Creio que o único erro que António Costa não pode
cometer, porque esse sim seria trágico para o país, é fazer promessas
que não possa cumprir nos actuais condicionalismos europeus. Aí sim,
correríamos o risco de abrir as portas aos Podemos, aos Syriza (embora
sejam movimentos de natureza diferente) ou ao populismo soft de Nóvoa.
IN "PÚBLICO"
12/04/15
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