26/02/2015

MARIA JOÃO AVILEZ

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Bandeiras de papel

Não é por temer que a TAP venha a ser mal vendida que me oponho. É apenas pela simples razão de que preferia vê-la extinta, seguindo-se a criação de uma outra companhia, se possível no dia seguinte.

1. Sempre andei na TAP, sempre lhe dei preferência mesmo quando havia outras escolhas, sempre a gabei, privada e publicamente – e quantas vezes não escrevi gostosamente sobre ela? – até que a realidade se impôs e (quase) deixou de haver razão para preferência ou elogio: tantos os contratempos, as mudanças súbitas, as greves. E os incontáveis atrasos, causando iguais incontáveis prejuízos à chegada ao destino ao tornar inútil e ocioso aquilo que seria um dia útil de trabalho no estrangeiro. Mas usando ou não a companhia, o meu patriotismo não se esgota nela e talvez mesmo não passe por lá. Que me lembre, nos últimos quarenta e tal anos só vi os portugueses comovidos duas vezes com o país, com a bandeira á mistura (Timor e o futebol), esta é a apenas terceira. Datada, porém: o facto da TAP ser “companhia de bandeira” não é o mais relevante deste dossier.

A “bandeira” não determinará o que quer que seja, não mudará as marés, nem fará rondar o vento da venda ou do status-quo. Nem me fará a mim mudar de opinião, apesar de nesta triste questão (eu acho-a tristíssima), me auto-colocar numa solitária terra de ninguém: nem prefiro a venda da TAP, nem defendo a sua manutenção como está. Estou contra a venda não por concordar com o tão florido lote de nomes que contestam a operação (deve ser inebriante participar em tantos e tão diversos abaixo-assinados em Portugal), mas – não nos iludamos – o florido lote chora esta venda sobretudo porque o governo quer concretizá-la.

Também não é por temer que a TAP venha a ser mal vendida que me oponho, o que já não seria pouco. É apenas pela simplicíssima razão de que preferia vê-la extinta, seguindo-se a criação de uma outra companhia, se possível, no dia seguinte. Enquadrada por parâmetros racionais e regida por regras de gestão cuja seriedade residisse (também) no facto de elas serem exequíveis, o que não parece ser o caso actual. Infelizmente a inviabilidade desta minha posição é de 100 por cento: as actuais estruturas da companhia, por já tão invertebradas, nunca permitiriam a sua extinção tal o estado a que chegaram ou que se consentiu que elas chegassem.

Excessiva a minha posição? Talvez. Mas que dizer do excesso das vigentes mordomias hoje já “oficializadas” na TAP, como direitos que não vejo praticados em mais nenhuma outra empresa e que não parecem incomodar, chocar ou afligir ninguém? Como conciliar a saúde económica e social de uma empresa com aquela espécie de “estado de excepção” que por lá incubou há muito, aliado à recorrente chantagem dos pilotos e ao demencial poder dos sindicatos (permanecendo porém comodamente obscuro quem eles representam de facto)?

Se é por “isto” que alguns solicitam ao país que se chore, se possível com uma bandeira nacional na mão, não haverá lágrimas minhas. Nem bandeira. A TAP de que me lembro e de que tanto usufruí, não era esta. Era confiável, cumpridora e briosa. Era formidável.

Isto dito, mais por intuição que por informação, quase nada espero da privatização que aí vem. Embora acusando-me de “fatalismo” (por acreditar pouco e não esconder dúvidas?) há quem me assegure que o cuidado, a exigência e o sentido estratégico que será posto nesta operação, fazem com que a questão não seja que a companhia venha a ser mal vendida mas que o não venha a ser de todo. Porquê? Porque nem os mecanismos do decreto lei da privatização nem o seu próprio caderno de encargos permitirão que a TAP seja vendida a preço de saldo ou com propostas que destruam o seu maior valor estratégico – o único? – que é o hub de Lisboa), além de que as propostas são vinculativas. Sub-entendido: ou estão “lá” as regras impostas no Caderno de Encargos ou não estão, que a Comissão de Avaliação não quer ser “meiga nem tolerante”.

Seja. Bons propósitos. Mas que ingredientes terão que estar reunidos na mente e na vontade de alguém para que esse “alguém” queira comprar uma companhia com este historial, estes sindicatos, esta dívida (que terá que ser assumida na íntegra), selando um compromisso crucial – o hub de Lisboa – e outro não de somenos que é a recapitalização da companhia para, entre outras, digamos, solicitações, investir numa frota adequada, e isto tudo de uma assentada? Um louco? Um visionário? Um aldrabão de feira? Um benemérito?
Sim, a questão não me deixa de modo algum indiferente. Talvez por isso não consigo encaixar-me em nenhum dos lados que se defrontam e confrontam: uns, garantindo que a TAP não voará para outras mãos a qualquer preço; do outro lado, uma pouco plausível plateia opondo-se à privatização da empresa com uma ferocidade só igualada pela absurda insistência em manter as coisas como estão, não se sabendo porém a quem enviar depois a conta pela paralisante continuação da tão estimada companhia “de bandeira”.

2. “Tudo” iria mudar. E mesmo que ninguém atendesse a que o “tudo” era confuso e difuso, que importava: “começava uma nova era na Europa”; “acabava a austeridade”, “agradeçamos aos gregos”. Não durou uma semana e chegou a ser embaraçante. O clamor de raiva e revolta que Tsipras queria audivelmente grego por esse Europa fora e por essa Alemanha dentro, esvaiu-se na sua própria irremediabilidade: em lugar da rendição da “Alemanha” e do seu titular das Finanças travestido de nazi, o Syriza obteve a “compreensão” bem educada mas não inédita de uma mera prorrogação de prazos (Portugal também obteve, mas com menos barulho) e um divertido vocabulário novo: a “austeridade “ passa a chamar-se “as dificuldades que hão-vir” (Varoufakis dixit) e a troika é agora conhecida nos corredores de Bruxelas como “the three institutions formerly known as the troika”. Etc. Mas não interessa muito, são só palavras e o “ponto” é uma realidade que se resume em duas palavras: a Grécia tem zero capacidade negocial.

De modo que a vida (de momento) seguirá como “habitualmente”, permanecem regras e compromissos e aí não houve semântica que movesse um cabelo. Vai ser preciso um génio da encenação para fazer crer aos gregos que a vida que os espera será muito diferente da que lhes proporcionava o ex-Samaras. De ficção em ficção, até á derrota final. (esta história não pode acabar bem). E isso sim, isso é que constitui uma falta de respeito sem tamanho pelo povo grego, isso sim é uma indignidade face às condições de aflição em que reside grande parte dele, isso sim é uma afronta face aos que não tem voz nem meios. Aos que votaram Syriza e aos que não votaram: a bandeira do engano é a mesma.

Sobra porém o tal embaraço: como foi possível pôr tanta mistificação numa operação eleitoral irresponsável de meia dúzia de exaltados (mais de 60% dos gregos não preferiram o Syriza), tanta arrogância na certeza da sua vitória final, tanto erro na avaliação das forças em presença, tanta impreparação, tanta batota? Tanta falta de raízes, integridade, regras? E em sintonia com tudo isto, que dizer da formidável vacuidade com que o Portugal que entre nós tem acesso à media, assumiu um coração grego, desfraldou a bandeira grega e abraçou o povo grego? Ou do empolgamento estridente com que embarcou numa fraudulenta retórica eleitoralista e caucionou uma mistificação sem tamanho (que outro nome tem a ficção que o Syriza ofereceu ao seu povo senão o de uma mistificação?). Sem se impressionar com a mochila de truques, abusos, mentiras, expedientes que os dirigentes políticos gregos (estes e os outros) trazem ás costas, sem nunca se entregar a um mero exercício de memória do que foi a vida política e social na Grécia nas ultimas décadas, fazendo enfim tábua rasa de passados turvos e presentes que não se recomendam. Mas sem essa revisão da matéria não haverá nem lucidez para analisar o hoje nem luz para antecipar o amanhã.

Não, não estou a ser cruel, estou a confinar-me à condição de espectadora que foi a minha desde há meses: segui e li a maratona eleitoral do Syriza, alinhavei aqui algumas linhas sobre ela, assumindo até que não me parecia que “a UE estivesse aflita com a perspectiva de vitória da extrema-esquerda grega” e que mais depressa o “estaria o próprio Syriza, com o que se apresentaria diante de si”. Lembrava que “há algum tempo que as instituições europeias e a própria ‘Europa’ tinham interiorizado a possível vitória de Tsipras.” E concluía que a “realidade” de dentro de semanas a Grécia não dispôr de liquidez para o Estado assumir as suas funções iria certamente transferir para os gregos – mais do que para a UE – a responsabilidade de uma conduta racional e fiável. Não me terei enganado muito. E… no entanto: há dias, um amigo meu, “socialista de topo” com quem eu ironizava sobre o estouvado apoio que dava aos amigos do Syriza, rejeitou “os amigos” mas respondeu-me com grande convicção que eles eram “bons soldados de infantaria que desbravam caminho útil”.
Mas também encontrei uma espécie de nostálgicos retardados (agora estou a lembrar-me de um influente de direita) entretidos em fazer-me notar “o lado romântico” do Syriza, do qual, dizia ele, “já nenhum de nós é capaz”.

Vou ali e já venho.

3. Sim, talvez Jean Claude Juncker se tenha sentido humilhado e ofendido, ninguém gosta de se ver preterido na sua capacidade de iniciativa como ele terá sido há dias pelo Eurogrupo, mas, caramba, ouvi-lo “assassinar” a troika do modo como o fez, após anos a fio, quer na sua qualidade de líder do Eurogrupo, quer enquanto personagem de primeiro plano nos palcos de Bruxelas, ter concordado com a sua “existência”, espanta qualquer um. Surpreendida porém pelo pouco eco que teve tal diatribe, falei nisto a três ou quatro pessoas bem informadas que, malevolamente, me remeteram para o álcool que se diz que o Presidente da Comissão ingere com generosidade: o personagem nem os comovia, nem aparentemente os inspirava.
Entregue a mim mesma ocorreram-me pressões, conselhos, indicações dos seus pares, etc. Quem sabe um súbito mas oportuno desejo de agradar aos gregos depois de ter estado em activa concordância com os troianos. Até me chegou a passar pela cabeça se seria já o efeito do seu prestimoso amigo Silva Peneda, com quem se diz que fará dupla (céus, não seremos poupados a nada?), para encontrar explicação para tão tardio rebate de consciência, mas parece que a dupla só começará mais tarde a operar a quatro mãos.
Seja como for: porque é que alguém tão supostamente qualificado quanto Junker, a lidar a toda a hora, dentro e fora de Bruxelas, com a complexidade e a responsabilidade do que lá se passa, sentiu agora esta tardia indignação quanto às funções da troika? Tenho pena que não tenha ficado totalmente claro. Ou, sequer, parcialmente claro

4. Já agora… também não ficou claro para mim o dilema, ou melhor a contradição, proposta por alguns (imensos) políticos de esquerda que opinam nos écrans e na imprensa: o Governo português é incessantemente acusado (por eles), desde há mais de três anos, de se “vergar” à Alemanha, de obedecer a Alemanha, de ser um cão de Angela Merkel e um lacaio de Schauble. Um colectivo rastejante, sem voz, poder, influência, critério.

Então como é que uma gente assim consegue ter tanta voz, poder, influência e critério para imperiosamente levar os alemães a ser implacáveis com os gregos?

IN "OBSERVADOR"
25/02/15


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