CONFLITO IN(CON)STITUCIONAL
1. No curso desta semana já tanto foi dito e
escrito sobre a última decisão do Tribunal Constitucional que é quase
possível dividir opinião pública e publicada entre os bons e os maus
dependendo, claro está, da perspectiva. Devo dizer que partilho de uma
preocupação comum a muitos juristas e não juristas e que não tem já que
ver com esta decisão ou, melhor dito, apenas com esta decisão. Em causa
está uma certa corrente jurisprudencial, que ao que parece medra no
Ratton, à luz da qual o entendimento sobre o poder judicial é tão lato
que chega mesmo a abarcar competências outrora confiadas, em exclusivo,
ao legislador. Pelos entorses que encerra e pelas perplexidades que
suscita essa deveria ser, quanto a mim, a principal questão a interpelar
as consciências da sociedade civil.Confesso que admitia que o TC
decidisse exactamente no mesmo sentido - o da inconstitucionalidade
destas e das demais normas, nomeadamente orçamentais, que ao longo
destes três anos lhe coube apreciar - se se contivesse numa
fundamentação estritamente jurídica ancorada, por exemplo, naquilo que
pudesse entender-se como a "violação grave" ou "o erro grosseiro ou
manifesto" dos/sobre os princípios constitucionais. E por aí se ficando.
Ao optar por "calibrar" as normas - do estilo: de 3,5% a 10% a partir
dos 1500€ pode ser mas de 2,5% a 12% a partir dos 675€ já não pode - o
Tribunal está já, como apontou e bem a Vice-Presidente Conselheira Lúcia
Amaral - a "restringir indevidamente a liberdade de conformação política do legislador ordinário".
Por isso, mais do que perceber como resolveremos o constrangimento
orçamental criado pela decisão da passada semana, importa saber como
resolveremos, para futuro, o constrangimento jurídico. Dos dois, posso
apostar, o segundo trará muito mais problemas.
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2. Entretanto, depois de três anos a jogar
uma espécie "mastermind" com o Constitucional - do tipo "descubra a
combinação certa para o ajustamento" ou, nas palavras do Conselheiro
Pedro Machete, "uma simples questão de tentativa/erro, a decidir casuisticamente" -,
o Governo perdeu a paciência e a arrumou o tabuleiro. A estratégia
agora parece ser outra: antecipar a aprovação de medidas para
"testá-las" no TC. De resto, volvidas várias "combinações de cores" já
não são os deputados da maioria, nem as figuras de proa dos partidos,
nem os dirigentes partidários a sindicarem as decisões do
Constitucional. É já o próprio Primeiro-Ministro quem afirma
publicamente que os juízes do TC que "determinam a inconstitucionalidade de diplomas em circunstâncias tão especiais" deveriam estar "sujeitos a um escrutínio muito maior do que o feito até hoje" E Acrescenta:
"como é que uma sociedade com transparência e maturidade democrática
pode conferir tamanhos poderes a alguém que não foi escrutinado
democraticamente?" Ora, aqui chegados não há já retorno. Quando o
Pedro Passos Coelho chamou a si esta contestação transformou uma querela
constitucional numa contenda institucional. Compreendo bem as
motivações e os estados de alma. No fundo ser hoje Primeiro-Ministro em
Portugal é quase tão temerário como pilotar um avião sem radares de
nenhuma espécie. Mas - confesso - não alcanço o objectivo. A quem serve e
de que serve juntar aos constrangimentos da decisão do constitucional
um conflito institucional? Res ipsa loquitur!
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3. Não é verdade ou, pelo menos, não é
inteiramente verdade, que aos juízes do TC falte legitimidade
democrática. O Tribunal Constitucional Português é composto por treze
juízes, sendo dez eleitos pela Assembleia da República e dois cooptados
pelos eleitos. Com efeito, pelo menos quanto aos primeiros, o mecanismo
de eleição garante uma espécie de legitimidade democrática indirecta. De
resto, a forma como são designados os "nossos" juízes não contrasta,
pelo contrário, com a de outros ordenamentos jurídicos europeus. Há,
contudo, aqui ou ali, pequenas nuances. Em França, por exemplo, o Conseil Constitutionnel
inclui juízes escolhidos pelo Presidente da República, pelo Governo e
pelo Parlamento, e inclui, por inerência, todos os antigos Presidentes
da República. Na Áustria a escolha dos juízes é "dividida" entre o
Parlamento e o Governo e na Alemanha a selecção reparte-se entre o Bundestag e o Bundesrat.
Já em Espanha a composição do Constitucional depende das escolhas feitas pelo Congresso, pelo Senado, pelo Governo e pelo Consejo Geral del Poder Judicial.
Numa futura revisão constitucional pode equacionar-se a possibilidade
de envolver o Governo ou o Presidente, polarizando a escolha dos juízes.
De resto, a forma como é hoje "cozinhada" a lista de juízes eleitos
pelo Parlamento - feita por acordo das maiorias parlamentares
conjunturais e envolvendo em regra PS, PSD e, ocasionalmente, o CDS -
não favorece o escrutínio público das personalidades eleitas, que são
ouvidas na 1ª Comissão Parlamentar, as mais das vezes, apenas para
cumprir uma formalidade. Acresce que, apesar de mais comuns nos EUA que
na Europa, os estudos que relacionam a indicação "partidária" dos juízes
e o sentido das respectivas decisões não apresentam, em regra,
resultados claros.Não creio, pois, que alterações no modelo de
designação dos juízes ou mesmo uma revisão constitucional - apesar de
necessária e desejável - resolvam o problema de fundo. Estamos no
domínio da interpretação e integração de princípios constitucionais -
igualdade, proporcionalidade, protecção da confiança... - cuja
formulação na Lei Fundamental está (e por natureza, estará sempre) longe
de estabelecer um padrão interpretativo de vinculação concreta. O ponto
está em lograr inverter uma certa "cultura constitucional" que, temo,
possa vir a fazer escola, mas que não é também exclusivamente
portuguesa. E a cultura - como as mentalidades - não se impõe nem por
lei nem por decreto.
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