03/06/2014

ALEXANDRA LUCAS COELHO

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Vamos escrever 
cem vezes: 
escrever é trabalho

1. Recebi um “convite” para ser “oradora” graciosa numa “conferência” sobre “Mercado de trabalho em Escrita”. O que ia fazer quando vi o “convite” era mais uma pesquisa para o livro que estou a escrever 10 ou 12 horas por dia, seis ou sete dias por semana. O “convite” teve o efeito de interromper isso, tirando-me do sério. Já uma vez toquei no assunto, que não é só meu, é de toda a gente que escreve, desenha, ilustra ou fotografa, mas parece que tudo está pior. Então voltemos ao assunto, a ver se a gente acaba com estes “convites” antes que eles acabem connosco.

2. O tom pomposo do “convite” começava no título. Não gostei do tom nem dos termos, mas o que ainda aí vinha. A “conferência” era daí a uma semana e eu deveria comparecer uma hora antes do início para conhecer os outros oradores, que não eram revelados no “convite”. A “ideia” seria “ter uma primeira fase em que cada orador expõe a sua experiência pessoal/percurso profissional” e depois debater “a visão que os vários oradores têm da evolução do mercado e do actual acesso a este por parte dos futuros profissionais do meio”. Tudo isto, no “centro de formação em áreas criativas” que endereçava o “convite”. Ou seja: uma escola privada manda um email uma semana antes de uma conferência, a dizer que me convida a ser oradora num painel de oradores não identificados, para falar da minha “experiência pessoal” e da minha “visão” da “evolução do mercado”, avisando-me desde logo que devo comparecer uma hora antes. Faltava-me só ler o parágrafo em que eles indicariam a remuneração, e de que forma contavam assegurar a minha deslocação a Lisboa num fim de tarde de segunda-feira, para uma sessão que acabaria às 21h. Mas não, não existia tal parágrafo. “Aguardamos a sua confirmação, com os melhores cumprimentos”, fulana de tal, do departamento de Comunicação.

3. Respondi de imediato o que já decidira ao começar a ler o email, que me era impossível aceitar o convite. Mas fiquei curiosa: não era possível um convite neste tom, mercado para aqui, profissionais para ali, sem uma remuneração. Ou era? Escrevi então a fulana de tal, do departamento de Comunicação, reforçando que me era impossível aceitar mas que gostaria de saber se os oradores não eram remunerados, se sim por que não estava isso no convite, se não por que razão. Fulana de tal respondeu que a conferência se integrava na “Animação Cultural” da escola, portanto não cobravam entrada, portanto não gerava receita, portanto não remuneravam os oradores. Respondi que discordava de tudo, do convite à explicação, que já escrevera sobre o assunto mas assim sendo voltaria a ele numa crónica.

4. Se eu não tivesse nada para fazer, e achasse divertida a ideia, a única justificação para aceitar a conferência seria ir lá dizer aos alunos que nenhum dos oradores estava a ser pago, e que essa é a primeira coisa a aprender, caso queiram viver da escrita: não sejam oradores de graça. Primeira coisa depois de: não escrevam de graça. Porque (vamos escrever cem vezes): escrever é trabalho e todo o trabalho deve ser remunerado. Elementar, não? Só que não. Ao ponto de uma escola que fala de mercado e profissionais achar que quem escreve pode ir lá falar de graça sobre como vive da escrita. No meu caso: que eu poderia sair do Alentejo, perder dois dias de trabalho entre ir e voltar, para falar numa escola privada sobre como vivo da escrita. É simples: vivo se me pagarem.

5. A justificativa para a ausência de remuneração seria ainda mais irritante se não fosse infantil. Uma escola privada vive de tudo o que conseguir fazer para captar alunos: conferências, “animação cultural”, o que lhe quiserem chamar. Então, cada orador não remunerado está simplesmente a dar horas do seu trabalho para que a escola privada continue a existir. Mas onde a coisa entra pela paródia é nisso de a conferência ser sobre “Mercado de trabalho em Escrita”, contrariando na produção o seu próprio conceito. Fiquemos pela paródia, na melhor das hipóteses não se trata de exploração, só falta de noção.

6. O problema da falta de noção é que ela afecta privados e públicos, todo o tipo de entidades, jornais e revistas. Portugal tem uma tradição de escritores que vieram das elites ou, quando não, que exerceram outras profissões em paralelo. Durante décadas foram raros, ou vistos com menosprezo, os casos de quem vivia apenas da escrita. Entretanto, sempre vi e continuo a ver gente que escreve sem um tostão, porque o mercado sempre se alimentou da sua própria atrofia. Há publicações em Portugal que sobrevivem de poder encomendar trabalho não remunerado. Ou seja, o mercado vive de não pagar o trabalho.

7. Mas é o trabalho que gera mercado. Esta conversa não é um choradinho sobre madraços que querem prebendas. Falo de trabalho remunerado, nas diversas formas que o trabalho da escrita pode ter: textos, debates, encontros, conferências, livros, filmes, peças de teatro. O Brasil tem muitos problemas para resolver quanto à leitura, mas conseguiu generalizar isto em entidades públicas e privadas: o tempo do escritor deve ser pago, porque esse tempo é trabalho.

8. Optar por escrever livros já é, em geral, optar por ganhar pouco dinheiro. O autor ganha 10 por cento na venda de cada livro, e as vendas são baixas. Portanto, quem escreve livros já dedica a maior parte do seu tempo a um trabalho, em geral, escassamente remunerado. Se consegue viver da escrita é porque se multiplica em outros textos ou encomendas, mas se esses trabalhos forem gratuitos estará só a adiar o próximo livro. Os convites não-remunerados impedem que os escritores escrevam livros. Em suma, se querem continuar a ler um autor, paguem-lhe. Não almoços e jantares, cerimónias e vénias: trabalho remunerado.

9. Uma amiga escritora contou-me que na primeira residência de escrita que fez na Alemanha havia um aviso que dizia: sempre que aceitar trabalhar de graça está a prejudicar outros. É isso, colegas, camaradas, escritores, estagiários, futuros jornalistas, ilustradores, desenhadores, fotógrafos: não trabalhem de graça para o mercado. O mercado que não paga o trabalho, ou não o paga decentemente, baixa a fasquia, apela à falta de alternativa, a quem precisa de ganhar curriculum. Trabalho mal pago não vai ser bom, bom trabalho leva tempo. Não nos queixamos mais do que você, engenheiro ou electricista, somos todos gente que trabalha. Em Dezembro de 2012 decidi deixar os quadros do PÚBLICO. Sou freelancer desde então, cronista deste jornal. Já aceitei escrever de graça para o mercado. A última vez foi em Dezembro de 2013. Não o farei mais.

10. Há uma última, grande, razão para que todo o trabalho seja remunerado: quero ser eu a decidir quando dou o meu trabalho. É bom dar o nosso trabalho a amigos, a quem quisermos. Pode ser bom trocar o nosso trabalho por livros, concertos, viagens ou tempo. Mas é uma decisão nossa, porque o nosso trabalho é nosso, e nenhuma entidade deve partir do princípio de que não é trabalho. Que a falta de orçamento em publicações, câmaras, centros, bibliotecas, escolas sirva para inventar alternativas. Tudo menos o “convite” que nem alude a remuneração, como se estivéssemos no Olimpo que não lida com dinheiro, ou estivéssemos a ser escolhidos, que benesse. Quem tenta viver exclusivamente da escrita, da ilustração ou da fotografia, e está longe de ter uma reforma, tão longe que provavelmente nunca a terá, embora tenha de pagar à Segurança Social todos os meses, não vive à espera do duende ou do espírito mágico. Trabalha todos os dias, lê, pensa, pesquisa, anota, apaga, faz, refaz, erra, volta. Vamos combinar que o duende ou o espírito mágico são tudo o que a gente quer mas dão muito trabalho?

ESCRITORA

IN "PÚBLICO"
25/05/14



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