A culpa é sempre
da austeridade
Travestido de amor pela humanidade, está-se apenas a manipular o sofrimento alheio para alcançar ganhos políticos.
A notícia foi publicada neste jornal na semana passada, com o
seguinte título: “O inferno de uma doente com cancro deixada na
escadaria de uma igreja”. Acrescentava o pós-título, com trocadilhos
celestes: “Uma mulher debilitada, com cancro, teve alta do Hospital
Joaquim Urbano, no Porto, mesmo sem ter uma casa para onde ir. Passou
uma tarde nas escadas de uma igreja, onde não viu o céu, até a Segurança
Social lhe arranjar um quarto. O inferno em que vive está agora
escondido numa pensão.”
O impacto foi imediato: a notícia foi replicada em
vários meios de comunicação e nas redes sociais, a fotografia de Rosa
nas escadarias da igreja tornou-se viral, só no site do PÚBLICO
a notícia tem neste momento 37 mil partilhas, e na quinta-feira à noite
escutei na SIC Notícias Gabriela Canavilhas referir-se à história de
Rosa como um caso de “banalização da miséria” e da imposição em Portugal
de uma “normalidade da pobreza”, culminando, nas suas palavras, na
total “indiferença perante a dor e o desespero”. Basta juntar pelos
pontinhos as sugestões de Canavilhas: as políticas de austeridade
promovidas pelo Governo causaram desgraças como a de Rosa, que não só
foi corrida do hospital portuense como ficou, apesar da extrema pobreza
em que vivia, sem o Rendimento Social de Inserção.
Só que de
seguida nós líamos a notícia e descobríamos uma realidade bastante
diferente: o hospital não queria deixar sair Rosa; a doente insistiu em
ir-se embora, garantindo que ia para casa de familiares; o próprio
director do serviço de Pneumologia ofereceu-se para, do seu bolso, lhe
pagar um táxi. Diria que enquanto retrato da “indiferença perante a dor”
haverá melhores exemplos do que este. Mais: em declarações posteriores à
Rádio Renascença, o Instituto da Segurança Social esclareceu que a
prestação do RSI de Rosa havia sido “suspensa pela entrega tardia dos
documentos necessários à sua renovação”.
É certo que, na sua
intervenção na SIC Notícias, Gabriela Canavilhas admitiu a hipótese de
Rosa ter saído do hospital a seu próprio pedido (“eventualmente até pode
ter sido”), mas para a ex-ministra isso é mero detalhe. Afinal, a
História demonstra que quando um bom socialista está imbuído de uma
vontade incontida de fazer o bem, o desejo dos indivíduos conta pouco.
Para o PS “Razão e coração”, o nosso dever é sempre ajudar o próximo –
mesmo que o próximo não queira ser ajudado. É o Estado-papá,
arrebanhando-nos para debaixo da sua protectora asa. Com este género de
raciocínio, não admira que António José Seguro tenha prometido há mês e
meio acabar com os sem-abrigo no espaço de uma legislatura.
Lamento,
mas martelar uma notícia para a fazer encaixar numa narrativa
pré-definida tem qualquer coisa de obsceno. Travestido de amor pela
humanidade, está-se apenas a manipular o sofrimento alheio para alcançar
ganhos políticos. Eu não tenho dúvidas de que a austeridade tenha
originado inúmeras injustiças, que merecem ser denunciadas – mas
denunciem-nas decentemente, se faz favor. E não transformem a
austeridade no bode expiatório de todos os males do mundo, como se ela
fosse a serpente que veio estragar o Paraíso. Existe um famoso adágio
português que diz que “a culpa morre sempre solteira”. O que estamos a
assistir nos últimos tempos é o contrário disso: um desejo imenso de
arranjar sempre o mesmo marido para a culpa. Nem que para isso seja
preciso arrastá-lo pelos cabelos até ao altar.
13/05/14
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