Desventuras de
um "aprendiz de feiticeiro"
Não sei quem assim o crismou, mas é o próprio chefe do Governo que vem
justificar a pertinência da alcunha que lhe atribuíram ao anunciar,
agora, o fim do ciclo da "miséria" que até aqui veio promovendo com tão
esforçada determinação.
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Na ocasião festiva da abertura do congresso de uma associação
empresarial, Pedro Passos Coelho prometia combater as desigualdades e a
injustiça, garantindo um fôlego renovado na promoção das políticas
sociais que, segundo alegava, teriam sido prejudicadas pelo "contexto de
emergência dos últimos três anos"! Tais propósitos eram anunciados um
dia depois da publicação pelo Instituto Nacional de Estatística dos
resultados de um inquérito que expunha as cifras negras do aumento da
pobreza em Portugal. .
As eleições para o Parlamento Europeu no próximo mês de maio, ao ritmo da contagem decrescente para a conclusão do programa de resgate, marcam o arranque de uma nova era de soberania "plena" e de "merecida" prosperidade. E assim, sob a pressão de tão prementes constrangimentos eleitoralistas, se quebrou a tremenda maldição: o povo "socrático" - preguiçoso, esbanjador e perdulário - tinha-se esfumado por encanto.
A verdade é que essa ficção fora construída apenas com o intuito de justificar a "singularidade" grega - e dessa forma ocultar a reiterada conivência da União Europeia no "embelezamento" das finanças helénicas. Mas nunca chegaria a ser aplicada à Irlanda, Malta, Itália, Espanha ou França. E se foi aplicada a Portugal, devemo-lo sobretudo a Pedro Passos Coelho e às forças "vivas" - académicas, económicas e financeiras - que viram nessa fórmula um oportuno potencial "encantatório".
Que melhor personificação para tão deploráveis vícios do que esse arcaísmo inútil, gordo e ocioso, que dá pelo nome de "Estado"? Desta forma, o projeto de lei de revisão constitucional anunciado há quatro anos no penúltimo congresso partidário tornar--se-ia dispensável e viria a ser substituído, já em 2011, pela antecipação das eleições e a imposição do "pedido de resgate".
O "memorando de entendimento" com a troika, sucessivamente revisto e adaptado a um projeto de mudança constitucional isento dos procedimentos formais de revisão, transformou-se na poção mágica "contrarrevolucionária".
A pretexto da "soberania limitada", simultaneamente, pelos "legítimos" direitos dos credores e pelos "poderes de facto" dos mercados, criou-se o desejado estado de exceção por onde desfilaram impunemente ao longo de três anos a supressão "extraordinária" de direitos fundamentais, a negação do pluralismo político, o desmantelamento de serviços públicos, a desqualificação do trabalho, do rendimento social de inserção, da proteção no desemprego ou da proibição constitucional do despedimento sem justa causa.
Sem o Tribunal Constitucional, o projeto restauracionista consubstanciado nesta governação teria sido ainda mais flagrante.
Aalegação do "contexto de emergência dos últimos três anos", como desculpa para a desoladora pobreza que, "doravante", Passos Coelho se lembrou de combater, equivale à confissão do fracasso de uma estratégia que nenhum golpe de ilusionismo pode ocultar.
Um "contexto de emergência" em que tanto confiaram que pelo caminho deixaram esquecidas a reforma do Estado e do sistema político que tanto os parecia preocupar. As eleições para o Parlamento Europeu serão o primeiro teste de que não pode sair-se bem quem andou todos estes anos a apregoar que não havia alternativa para estas políticas de austeridade, quem acusou de antipatriotismo aqueles que ousaram debatê-las publicamente, quem se demitiu de discutir nas instâncias da União e com os outros estados-membros condições mais justas e realistas para o cumprimento das nossas obrigações.
Em contraponto, o principal partido da Oposição não se limitou a apresentar agora uma lista de candidatos competente e renovada. Como critério das escolhas feitas, aponta a importância de uma articulação eficaz entre o futuro Governo e os deputados, nas áreas estratégicas que ali especifica: a economia e o emprego, a união monetária, o mar e a sustentabilidade energética. Um tiro certeiro.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
28/03/14
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