Hereges e proscritos
“Tendes talvez mais medo vós, que pronunciais essas palavras, do que
eu, que as escuto.” Não é preciso estar em frente à Inquisição romana, a
ouvir a sua própria sentença de morte, para invejar a coragem de alguém
capaz de reagir assim.
E quem reagiu assim foi
Giordano Bruno, após nove anos nos cárceres do Santo Ofício, quando o
chamaram para lhe comunicar que ele seria queimado numa fogueira, no
Campo das Flores, em Roma, no dia 17 de fevereiro de 1600 — há
exatamente 414 anos.
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A ideia que fazemos do nosso mundo por
comparação com o mundo pré-moderno é a de um mundo em que se circula e
viaja muito, e em que existe uma cultura da celebridade transnacional.
No mundo pré-moderno, pensamos nós, as pessoas nasciam, viviam e morriam
no mesmo lugar — sem contacto com a maior parte dos outros humanos. Mas
não era bem assim, e Giordano Bruno é um grande contra-exemplo. Nascido
na pequena aldeia de Noli, perto de Nápoles, viajou por toda a Europa,
ensinando em universidades e casas particulares de Paris, de Londres ou
de Praga. Em Toulouse, encontrou-se com o médico e filósofo português
Francisco Sanches. Giordano Bruno tinha muitas certezas. Francisco
Sanches era tão cético — um “pirronista”, como então se dizia — que a
sua obra-prima se chamava Que Nada Se Pode Saber.
Giordano
achava que tudo se podia saber, e muito se podia memorizar. E por isso
se tornou uma celebridade no seu tempo. Reis e príncipes de todos os
reinos e principados queriam aprender a memorizar, porque achavam que
memória era poder. Alguns acreditavam até que memória era feitiçaria. Um
nobre veneziano chamado Giovanni Mocenigo, chamou Giordano Bruno à sua
casa para aprender a arte mágica. Um dia, quando se fartou, denunciou
Giordano Bruno à Inquisição.
O dia 17 de fevereiro é um dia muito importante, e não só por ter sido o dia em que queimaram Giordano Bruno na fogueira.
Quase
setenta e três anos mais tarde, adoeceu em cena o dramaturgo francês
Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido por Molière. Por azar estava a
encenar — e representar — uma comédia contra os médicos, uma das
melhores dele, o Doente Imaginário. O seu sarcasmo era tão profundo que não foi para admirar quando, depois de se sentir mal, nenhum médico quis cuidar dele.
Mas
os médicos não eram os únicos inimigos de Molière. Os padres e outros
devotos também não gostavam dele, e, ao saber que Molière estava
moribundo, prepararam a vingança que lhes escapava desde que contra eles
Molière escrevera O Tartufo. Quando a notícia da morte de Molière chegou, moveram os seus esforços para que lhe fosse negada a sepultura em cemitério.
E
foi assim que o dramaturgo mais famoso da sua época, que em tempos
tinha sido o favorito do Rei-Sol Luís XIV, foi enterrado em solo
não-consagrado, como um proscrito. Era um dia chuvoso, 17 de fevereiro
de 1673. Dizem que era terça-feira de Carnaval.
Porque decidi
escrever sobre hereges e proscritos não sei. Sei que devemos muito a
estes dois em particular. E por isso merecem que celebremos a vida neste
dia das suas mortes.
(para a Lucília, e para o Gonçalo, a 17 de fevereiro)
IN "PÚBLICO"
17/02/14
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