Facturas, sortes
e vergonhas
Na popular discussão sobre a Factura da Sorte
estou entre o grupo de portugueses que considera manifestamente
exageradas as reacções de desdém e de "repugnância" que se ouviram nas
últimas semanas. É certo que, para um Governo que quer transformar a
austeridade numa "nova ética da existência", expressão ontem aqui usada
pelo Fernando Sobral, lançar um sorteio que incita ao consumo é uma
contradição. Também não será menos verdade que, numa sociedade
depauperada, empurrada para o limiar da subsistência, acenar com carros
de luxo roça a insensibilidade social e dá um certo toque
terceiro-mundista. Mas, em tempos de governação pragmática, o que não
faltam por aí são incoerências políticas e exemplos de vexatórios
retrocessos civilizacionais.
Ainda esta semana soubemos que, ao mesmo tempo que assiste à
sangria de uma geração jovem e qualificada para o exterior o Governo
está ocupado em criar programas que atraiam e facilitem a obtenção de
residência a … "talentos" estrangeiros. Nesta mesma linha, e enquanto
sujeita os portugueses a um esforço sem precedentes no IRS e no IMI, o
Estado continua a conceder generosos descontos fiscais a quem se registe
como residente em Portugal, ao abrigo de um sintomaticamente baptizado
"regime especial para cérebros". Artistas, investigadores,
trabalhadores, reformados: ser estrangeiro ou ter por lá passado é
sinónimo de uma inteligência superlativa e merece-nos todas as
deferências e especiais recompensas. Se não é terceiro-mundista, é o
quê?
Nos últimos dias ficámos também a saber que,
numa altura em que o País atravessa uma das piores crises económicas da
sua história moderna o número de prestações sociais está em queda livre,
deixando milhares de famílias desamparadas. À força da repetição de uma
mensagem retrógrada e perigosa – de que é preciso guardar o dinheiro
para quem realmente precisa - os desempregados estão a ser transformados
em mandriões e os pobres equiparados a perigosos caçadores de apoios
públicos. Se não é obscurantista, o que é?
E o que
dizer de um País que continua a fazer depender a sua competitividade
externa da manutenção de salários miseráveis de 431 euros líquidos, e
que, em vez de aspirar aos melhores exemplos europeus em matéria de
organização do tempo do trabalho, coloca as férias e os feriados no topo
das causas da improdutividade da economia?
E de um
Governo que, para abrir caminho à aceitação social de medidas de
redução da despesa pública não arranja melhor método do que incitar a
inveja entre novos e velhos, trabalhadores e reformados, função pública e
sector privado da economia?
Ou como classificar
sucessivos governantes que, como comprovava um estudo divulgado esta
semana, usaram sistematicamente a administração pública para colocar
"indivíduos com redes de conhecimento que podem ser relevantes para o
partido"? Ou de alegados paladinos da transparência que exercem o poder e
gerem a informação pública como se de coutadas privadas se tratassem?
Em
Portugal abundam os exemplos de práticas de Terceiro Mundo e a intenção
de substituir a obrigação cívica e legal de pedir facturas por um
sorteio semanal pode ser mais uma. Mas, anacronismo por anacronismo, eu
cá prefiro aqueles que nos beliscam a honra, mas ainda nos deixam alguma
coisinha no bolso.
*Jornalista
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
14/02/14
.
Sem comentários:
Enviar um comentário