A era alemã em Kiev
Nas visões maniqueístas do que se passa na
Ucrânia, teremos dois campos: dum lado o campo ocidental, pró-União
Europeia e obviamente democrático, do outro o campo pró-russo,
anacrónico e, claro, antidemocrático. Como sempre as coisas são um pouco
mais complicadas. A divisão entre o leste e o oeste, entre os mais
próximos a Rússia e os mais ligados ao resto da Europa, é histórica e,
vale a pena dizê-lo, nem sempre permite leituras muito românticas da
realidade. O nacionalismo antirrusso (anterior à própria URSS) ucraniano
teve, na II Guerra Mundial, por razões que a bárbara história do
estalinismo pode ajudar a compreender, momentos pouco gloriosos. Basta
recordar que foi dado, pelo anterior presidente, o "europeísta" Viktor
Yushchenko, o título de "herói da Ucrânia" a Stepan Bandera, líder
histórico do nacionalismo ucraniano que manteve um colaboracionismo
declarado e activo com os ocupantes nazis enquanto isso foi da sua
conveniência.
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O que espanta é que a história da Europa, repleta de
ressentimentos e ódios, ainda deixe espaço para histórias da
carochinha. Foi, aliás, comovente ver Durão Barroso manifestar o seu
profundo incómodo com as cargas policiais em Kiev (que também me
indignaram) depois de quase todos as capitais dos países em crise na
Europa terem sido varridas, nos últimos três anos, à bastonada sem um
"ái" da Comissão Europeia.
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Uma das principais figuras na oposição ao presidente
"pró-russo" Viktor Ianukovich é o pugilista Vitali Klitschko, provável
candidato às próximas presidenciais. A sua fortíssima ligação a Angela
Merkel é sobejamente conhecida. Viveu nove anos na Alemanha (é, aliás,
lá que paga os seus impostos), há um ano participou no congresso da CDU,
em Hanover, e a sua Aliança Democrática Ucraniana para a Reforma
(formada em 2010 e já membro observador do PPE) tem recebido, segundo o Der Spiegel,
apoio financeiro, logístico e de formação política dos conservadores
alemães. O anterior ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Guido
Westerwelle (do FDP), encontrou-se mesmo, em Kiev, na cimeira da OSCE,
com os manifestantes não tendo mantido qualquer contacto com o governo
do país anfitrião, naquilo que foi justamente lido como uma evidente
interferência na vida interna da Ucrânia.
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É absolutamente compreensível que uma parte razoável
dos ucranianos se queira ver livre do cerco russo (e da sua união
aduaneira), que abusa dos parceiros e usa da chantagem para os vergar
(por exemplo, através de ruinosos contratos de fornecimento de gás).
Ainda assim, as posições "pró-europeias" e "pró-russas" dividem o país
em partes quase iguais. E Portugal será um dos últimos países europeus a
poder olhar para a Alemanha como um parceiro incapaz de comparáveis
tropelias. Isto apesar de Rui Machete, num momento de humor, ter
protestado contra as pressões russas sobre os ucranianos. Ser
pressionado, pelo governo alemão, pela Comissão Europeia, pelo regime
angolano ou seja por quem for, é coisa que apenas queremos reservar para
nós próprios.
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O meu conhecimento sobre o assunto não me permite ter
uma posição clara sobre a situação ucraniana, mas permite-me garantir
que são a Alemanha, e não essa ficção que damos o nome da União Europeia
(com uma ténue relação com um projeto europeu em que nos empenhamos há
quase três décadas), e a Rússia que estão a jogar os seus interesses na
Ucrânia. Que uma e outra se vão imiscuindo nos assuntos internos daquele
país por mero interesse económico. E que não estamos a assistir a uma
revisitação dos velhos confrontos da guerra fria mas apenas a um
confronto económico entre a Alemanha (que quer o acordo de parceria) e a
Rússia (com a sua união aduaneira) que também se assiste, por exemplo,
na Moldávia (onde a maioria da população está do lado das pretensões
russas).
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Das duas uma: ou acreditamos que assistimos em Kiev a
uma luta entre forças democráticas apoiadas por Bruxelas (que se tem
esquecido desse combate na Hungria, que faz parte da União) e as forças
antidemocráticas comandadas por Moscovo, e estamos obrigados a um gesto
de solidariedade, ou percebemos que valores bem mais baixos ali se
jogam. E, não depositando nós a esperança do futuro da democracia
europeia nas mãos da senhora Merkel e dos fantoches que ela vá
inventando, resta-nos o mais puro dos pragmatismos: Portugal não tem,
como qualquer país periférico europeu, nenhum interesse na continuação
do alargamento da União Europeia para leste. A paz da Europa também não
ganha nada com a intensificação do domínio alemão em regiões de
influência historicamente russa. Porque é a isso mesmo que estamos a
assistir: enquanto Merkel verga, através do euro, a Europa ocidental,
vai conquistando a Europa oriental aos russos. E, como devíamos já ter
aprendido, nunca é boa ideia um só país concentrar tanto poder na
Europa.
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Quem julgue que o "europeísmo" e a "democracia" têm
alguma coisa a ver com este filme ainda não percebeu bem o que se está a
passar na Europa. Serei insuspeito, pelo que já escrevi sobre a
tenebrosa figura, de qualquer simpatia por Vladimir Putin (ele mesmo,
quando os inimigos eram os perigosos muçulmanos, vendido há uns anos
como um democrata), mas sei em que e momento estamos na história da
Europa. Por cá, entrámos definitivamente na era alemã. E é isso mesmo
que se joga em Kiev.
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